Adélia adentrou a sala de reuniões imaginando que tratariam dos últimos detalhes para as comemorações do dia do escritor, afinal, um instituto daquele porte, com aquele invejável acervo, deveria organizar ao menos uma palestra, com convidados ilustres - e ela já tinha em mente as pessoas certas, os cronogramas, a decoração, tudo planejado, há anos. No entanto, ao reparar nos rostos entusiasmados dos que já estavam por ali, deduziu, do alto dos seus vinte e cinco anos de repartição, que não se tocaria em qualquer assunto culturalmente relevante - apesar de trabalhar em uma instituição cultural, poucos dos que a cercavam davam importância a algo além do salário que os permitia frequentar os caríssimos teatros da zona sul e os ainda mais caros cinemas de último andar de shopping. Um pouco preocupada, notou a presença de um rapaz engravatado, sentado na cadeira que costumava ser do senhor Garcia. Imaginou que o rapaz, novo no lugar, pudesse ter feito confusão na hora de sentar, mas, por já conhecer as danças das cadeiras que os políticos acabavam fazendo por ali nas trocas de comando, preferiu recorrer à atitude de sempre, manteve a aparente indiferença. Aos poucos, todos os funcionários foram chegando e, quando alguns já buscavam mais cadeiras nas salas ao lado, o rapaz disse que já havia trabalhado com o senhor Garcia quando começou na prefeitura, que o respeitava muito e, por fim, não querendo alongar mais o discurso apresentou-se como o novo chefe. Adélia examinou-o de cima abaixo - não devia ter nem trinta anos, um desses alunos de MBA: terno e gravata, notebook na mochila e um celular sempre ao alcance das mãos.
O Silas, puxa-saco oficial do instituto, pediu a palavra e deu as boas-vindas por todos. Já Amélia, esvazia-saco oficial, que colocava Adélia em algumas situações constrangedoras por ter um nome tão parecido, engraçou-se para cima do rapaz. Os outros funcionários mantinham uma posição moderada, felicitavam-no, mas sem demonstrar felicidade alguma, afinal, a morte do senhor Garcia, tão repentina, havia sido um choque para muitos deles. Adélia permanecia indiferente.
Após as apresentações e formalidades, o rapaz resolveu mostrar a que veio e, então, solicitou que todos se retirassem do recinto, com exceção a Adélia, com quem precisava conversar.
- Todos sabem que o senhor Garcia, que Deus o tenha, estava planejando uma reorganização das estruturas deste Instituto. Eu já fui informado de que, em algumas áreas, as discussões já estavam avançadas, e que, em outras, os projetos já estão em andamento. Você é responsável pela biblioteca, não é?
- Sim, sou eu.
- E o que tem a me dizer?
- Seja bem-vindo.
- Não, não. Obrigado! Mas quero saber sobre a reformulação da biblioteca. O que está sendo feito? Quais as sugestões? Os projetos? Não fui informado sobre nenhum avanço e, como você bem deve saber, a biblioteca é um dos setores essenciais deste instituto.
- Na verdade, a biblioteca não precisa de nenhuma mudança. Tudo funciona perfeitamente e ninguém fica sem atendimento. Eu sei exatamente onde está cada obra.
- Mas é exatamente esse o problema. Não podemos ficar dependendo dos seus serviços e da sua memória.
- Mas, alguém está reclamando? Não pode ser.
- Não, não é isso. Ninguém falou nada, eu acabo de chegar. Bom, de qualquer maneira, precisamos informatizar o sistema, para que qualquer pessoa, mesmo na sua ausência, possa encontrar-se em meio a tantos livros.
- Eu tenho minhas objeções...
- Não vamos nos precipitar em conflitos, eu não quero parecer um sujeito autoritário. Vamos combinar assim, você pensa em alguns itens que podem ser melhorados na biblioteca e me entrega um relatório na semana que vem. Que tal?
Adélia saiu da sala calada, fez apenas uma reverência com a cabeça, concordando com o chefe. Escorreu pelo corredor, desolada mais uma vez. Afinal, depois de colocarem tudo nas máquinas, quem precisaria de uma velha por ali, rondando os corredores, tentando lembrar-se de fileiras, colunas e sobrenomes de autores. Ela costumava ser a peça chave daquele lugar, todo mundo precisava dela, todos precisavam conversar, pedir alguma coisa e, volta e meia, acabava até recebendo algum agrado, flores no dia da bibliotecária e cestas de café da manhã no final do ano - todas utilizadas no ano seguinte para levar ovos de páscoa para as crianças do abrigo. Tinha uma posição privilegiada, regalias sazonais e, além de tudo, sentia-se menos só quando podia ajudar as pessoas a encontrar o que procuravam. Ao ver isso tudo sob ameaça, percebeu que, mais uma vez, não poderia permanecer indiferente.
Ao cair da noite, após o silêncio da biblioteca espalhar-se por todo o instituto, tal como havia feito na semana anterior, Adélia embrenhou-se pelos amplos jardins, dessa vez com o alvo certo, sem precisar procurar, dirigiu-se ao canto do muro logo atrás da estufa, um tanto abandonado pelo jardineiro, onde cresciam furtivamente três pés de mamona. Colheu dez daquelas bolinhas espinhosas e, quando já se dirigia ao portão de saída, acabou surpreendida pelo novo chefe, que aproveitava para conhecer melhor as instalações da estufa, uma vez que ele mesmo pretendia instalar uma em sua casa. Com o susto do encontro, Adélia deixou caírem ao chão sete das dez mamonas. O novo chefe abaixou-se para ajudar e disse:
- No escuro, vai ser difícil para encontrar, deixe que eu te ajude a procurar.
Com uma gota de suor frio prestes a escorrer pela nuca, ela tentou demovê-lo da boa intenção:
- Senhor Roberto, faça-me o favor, não precisa dar-se ao trabalho. São só algumas frutas, eu posso colher outras.
No entanto, ele já agachado, tateando a grama, estava disposto a colaborar, queria apagar qualquer má impressão que pudesse ter sido criada na primeira reunião:
- Não faz mal ajudar, até porque fui eu que acabei te assustando.
Tentando controlar a ansiedade, Adélia olhava tudo em volta, buscando palavras, buscando uma solução. Ele então levantou, subitamente:
- Ai, caralho!
- O que foi?
Aproximando-se da luminária pendurada à porta da estufa, ele continuou:
- Espetei meu dedo, não foi nada... Achei essa mamona aqui.
Adélia aproximou-se, com as três mamonas que lhe restaram nas mãos trêmulas, e disse:
- Seu Roberto, não precisa me ajudar não, vá tratar desse dedo.
Ao olhar para as mãos de Adélia, que instintivamente as recuou, ele perguntou:
- A senhora está colhendo mamona?
- É... Para fazer óleo.
- Podia ter me avisado, vou procurar com mais cuidado.
Ao terminar de falar, ele voltou-se novamente para o local onde estava agachado e retomou as buscas. Ela, tendendo ao desespero, voltou a olhar em volta, dessa vez procurando objetos e ações que pudessem resolver a situação. Agachado, tateando com mais calma o chão, ele puxou conversa:
- Não sabia que dava para fazer óleo com isso não. Só aquele biodiesel, mas aquele não deve dar para fazer em casa.
- Dá sim... Óleo de rícino.
Após virar-se de costas, ainda nas buscas:
- Mas isso é bom para quê?
- Congestão.
- Eu não sabia, não. Na verdade, a única coisa que eu sei, desde garoto, é que a semente disso é um veneno.
O silêncio que se seguiu só foi interrompido pelos grilos.
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