31.3.09

Urubus

Ao notarem alguém em dificuldade, não se contêm e estendem a mão.

Com a mão estendida e o enquadramento ajustado, clicam o momento, tão intenso e visceral. "Uma foto sem preço", dizem os sujeitos sem valor.

30.3.09

Revolução

As primeiras a demonstrarem o espírito revolucionário foram as vacas. Naturalmente, como ensina a história, as primeiras a reagir foram consideradas loucas.

Com o tempo, as aves seguiram os passos e foram até mesmo mais agressivas, deixando centenas de vítimas antes de serem caladas.

Atualmente, os porcos se rebelam e não se sabe ao certo o estrago que vão causar. Ninguém sabe quem serão os próximos. Em breve, não haverá mais animal algum submisso ao homem.

28.3.09

Ao pó retornou

Com aquele tiro, que jurava ser o último, varou a noite

Antes daquele suspiro, o último, descobriu que as ruas traiçoeiras, encobertas pela noite, faziam o acerto de contas

27.3.09

26.3.09

Ganhar a vida

Alguns poucos, sortudos, já a tem desde que nascem

A maioria, no entanto, precisa fazer algum esforço, algo digno de merecê-la

25.3.09

Para o mundo

Quando o garoto nasceu, decidiram criá-lo para o mundo

Aos 8 anos, já tinha visitado a Disney e boa parta dos EUA. Aos 15, apesar de confundir Praga com Viena, conhecia as principais capitais européias. Comemorou o aniversário de 18 anos na Austrália.

Aos 40, ainda precisava do motorista para ir ao bairro vizinho.

24.3.09

Pombos

Vivem pelas ruas, avenidas e praças. Concentram-se principalmente nas grandes cidades, mas podem ser encontrados em todo e qualquer lugar.

Alimentam-se de qualquer coisa, tem hábitos pouco higiênicos e carregam diversas doenças. Há alguns que se solidarizam, os defendem e os mantêm. Mas, a maioria das pessoas sente nojo, desvia os passos e olhares.

De vez em quando, alguns resolvem acossá-los, espantá-los ou agredi-los. E os coitados, sem terem asas para fugir, juntam o que conseguem, do muito pouco que têm, e correm.

23.3.09

Impregnado

Banham-se com o sangue que escorre da televisão e secam-se envolvidos pelas páginas dos jornais

Para tentar disfarçar, com uma leve borrifada de rimas fáceis e palavras difíceis, dão cheiro de arte aos ecos, reflexos, espelhos emoldurados

22.3.09

Lição de desigualdade

Durante a noite, do alto do morro, observando as luzes da cidade, os garotos dizem:

- Para cada estrela lá em cima, há mais de mil aqui embaixo.

20.3.09

Péssimo escritor

Os papéis, cheios de suas palavras vazias, saltavam da escrivaninha e corriam para o corredor

A caneta escapava dos dedos, caia ao chão e rolava para baixo da cama

A cada cochilo, uma revolta

19.3.09

Criação do ornitorrinco

No oitavo dia, entediado, cutucava o chão com uma vareta

Brincando com as sobras de barro e terra seca, entre formas disformes, aspirou um pouco de pó e espirrou

17.3.09

Nossa música

Em um momento qualquer, com ele batucando na estante, perceberam que não haviam escolhido nenhuma música

De inicío, perderam o compasso, acharam que era grave. Preocupados, tiveram dores de cabeça agudas

Após algum tempo, sintonizados, encontraram a solução, perceberam que eram livres para ditar o próprio ritmo

16.3.09

Avaliação

Deixou o sapato brilhando, ajeitou o cabelo e vestiu o melhor terno

Afinal, hoje em dia não se olha apenas os dentes

15.3.09

Heróis nacionais

Ergue-se imponente sobre o Palácio Tiradentes, antiga sede do congresso nacional, montado sobre um cavalo e de espada em mãos

Abaixo, várias pessoas sustentam, em seus ombros, o cavalo e ele

14.3.09

Voo livre

Esses dias, em meu sonho, fui um pássaro. Escapei de uma gaiola e, finalmente, sentindo-me livre, resolvi voar até o lago para banhar-me

Ao ver a situação da água, desanimei. Voltei andando, engaiolado

13.3.09

Isolamento

Não se aproximava de ninguém. Mas, por onde passava, ouvia as conversas alheias e ia costurando-as, transformando em uma coisa só, só dela.

Ao final do dia, tinha em mãos uma bela colcha de retalhos, perfeita para proteger-se do frio da solidão

11.3.09

Manhosa

Vem toda cheia de mimimi
transbordando de artimanhas amorosas

Quando a encho de beijinhos
em um suspiro, esvazia

10.3.09

Correspondente de guerra

Após algum tempo
sem o estalar de tiros
ou a covardia dos assaltos

Pergunto-me curioso
nesta zona de guerra
se, ao menos um pouco
a mídia não exagera

8.3.09

Seleção natural

Entrou na sala, ajeitou-se na cadeira e entregou um questionário que abordava os seguintes temas: qual foi a última pessoa que ocupou o cargo, ultimo salário, motivo da saída, quais outras experiências a empresa tinha na formação de profissionais, quanto pretendia oferecer de salário, se envolvia-se em algum projeto social, cultural ou ambiental, etc.

Permaneceu revirando alguns papéis sobre a mesa enquanto a gerente de recursos humanos respondia ao questionário.

Após o preenchimento, pediu a ela que explicasse um pouco melhor sobre a empresa. Pouco convencido de que o trabalho valeria a pena, avisou sobre as etapas seguintes, uma avaliação de responsabilidade social e uma dinâmica de empresas, e disse que entraria em contato assim que tivesse uma resposta.

7.3.09

Dedicatória

Alegrou-se com a notícia de que o livro seria dedicado a ela. Caminhou até a livraria com passos e um sorriso dignos de uma musa imortal, inesquecível.

Ao abrir na primeira página, leu: "Em memória de..."

O livreiro recolheu o corpo.







2007 - XVII Concurso de Contos Luiz Vilela - Fundação Cultural de Ituiutaba - MG;
Publicado na coletânea do concurso

6.3.09

Visita indesejada

Na casa da ansiedade

Mesmo após o café
o cigarro
e o pacote de biscoito

As horas resolvem ficar mais um pouco

5.3.09

Caçada

Diante do formulário de ocorrência, no local reservado ao estado civil, escreveu com letras garrafais: caçada.

De início, acharam que fosse um erro. Ao verem as marcas, perceberam que o erro era suplício.

4.3.09

Vozes

Cansadas de ouvir, acostumadas pela vida a serem ignoradas

Sorriem sinceramente quando lhes é dada oportunidade de não calar

3.3.09

Salto

Na primeira vez que vi os salmões atirando-se contra pedras e caindo nas garras de ursos, acreditei que estavam cometendo suicídio. Na época, explicaram-me que eles voltavam todo ano ao lugar em que nasceram, para procriarem. Também disseram que, para chegar, precisavam subir o rio, nadar contra a correnteza e enfrentar todos os perigos.

Atualmente, como o maior perigo tornou-se a água, corrosiva, os salmões, implorando por uma morte rápida, saltam mirando a boca dos ursos.