30.11.10

Autocrítica I

Poesia de jardim

em estilo neoclássico
imóveis e defasadas

estátuas

cobertas de musgo

29.11.10

Reality show

No centro do auditório, a justiça permanece sentada e vendada, enquanto o apresentador aponta para um político corrupto, depois para um ladrão de galinha e pergunta:

- Você solta esse para prender este aqui?

Diante de tantos olhos, mas sem qualquer vergonha ou hesitação, ela grita:

- Siiim!

26.11.10

Maria fumaça

As engrenagens
um pouco gastas
em eterno vai e volta
atritam-se - barulhentas

Enquanto isso
sobre as chamas
a válvula dá voz aguda
aos vapores - insistentes

Na estação da memória

entre a máquina de lavar
e a panela de pressão

embarco nesta viagem
às manhãs de domingo
na casa de Maria
minha mãe - locomotiva

25.11.10

Chuva de verão

Quando o calor
tornou-se constante

e as escassas fontes
de água doce
começaram a secar

caminhar pelas ruas
tornou-se um tanto perigoso

lá do alto
choviam corpos
desesperados

Cantando na chuva

 Naquela época, não havia quem não o reconhecesse quando caminhava pelo centro. Alguns até ensaiavam alguns passos e o seguiam pela rua, na expectativa de que ele cantasse - ao menos algum refrão - e exibisse toda sua habilidade no sapateado. Ainda que um pouco contrariado, e um bom tanto sem graça, ele sucumbia aos desejos dos fãs e acabava por apresentar alguns passos e um trechinho de alguma das canções dos sucessos de bilheteria.
Paolo Bellini, apesar do nome estrangeiro, era uma estrela nacional, ainda não era das maiores, mas despontava como um dos atores e cantores com maior potencial de futuro. Os críticos diziam que seria o Gene Kelly tupiniqueim; que logo estaria dando as caras - e as cartas - em Hollywood, enquanto os colegas o admiravam pela capacidade de criação, direção e atuação nos grandes musicais.
Contudo, apesar do otimismo, tão logo ele despontou, os musicais começaram a perder força. Ainda que os produtores insistissem, tentando inserir elementos da cultura nacional e da comédia, as bilheterias caíram vertiginosamente após o “efeito novidade”: todos quiseram conhecer o cinema falado e cantado, mas muitos, depois de conhecer, preferiam ouvir rádio, que era de graça. Com a queda nos rendimentos, e o consequente corte de gastos, a qualidade das produções também caiu; Apesar de continuar atuando, por não poder se dar ao luxo de recusar os minguados salários, ele já não tinha mais tanto espaço - nem tantas expectativas. Geralmente, quando escalado, fazia papéis secundários, quase figurantes, entre recepcionistas de motel e turistas abobalhados.
Com a chegada da televisão e das novas influências no cinema, Paolo perdeu definitivamente o pouco espaço que tinha. Ainda marcado por suas atuações nos musicais, seguidas por pontas estereotipadas em comédias de mau gosto, acabou sendo visto como um bom cantor, mas que não tinha talento algum para a atuação. Por este rótulo, ingratamente anexado a ele, acabou esquecido tanto pelo cinema quanto pelos canais de televisão, que haviam contratado boa parte dos seus antigos colegas.
Depois de tantas decepções, com o esvaziamento de seu potencial - consumido pelo álcool e pelo cigarro, foi uma questão de tempo até que ele arruinasse qualquer chance de recuperação da carreira. Por um punhado de trocados, cantava em bares, casas noturnas e ambientes pouco familiares. Além de ganhar pouco, ainda gastava mais da metade antes mesmo de cambalear de volta para o quartinho imundo em que se largava; A essa época, morava na Gomes Freire, em um puxadinho nos fundos de uma pensão para solteiros.
O passar dos anos fez questão de surrar-lhe a voz e as juntas. Após algumas décadas, ele mal podia reconhecer-se nos cartazes dos tempos áureos, que guardava bem dobrados, com todo cuidado, em uma velha maleta de couro, debaixo da cama do quartinho da pensão - onde já morava de favor há mais de dez anos. Naquele tempo, usava barba longa e bigode, saia à rua apenas para o essencial e tinha pavor de citar o próprio nome - sentia-se extremamente mal, irritado e injustiçado, quando alguém o reconhecia, por rosto ou por nome, e questionava: “Mas você não era ator de cinema?”.
Nos bares da região, muitos dos garçons o conheciam - dos tempos de cantor boêmio - e, quando podiam, tratavam de alimentá-lo. No entanto, quando os clientes pediam, não demoravam a afastá-lo. Nunca chegou reclamar ou a agredir alguém, talvez nem tivesse condições físicas para isso, mas causava um mal estar e, então, os garçons preferiam retirá-lo, até para evitar que se criasse confusão. Diante das expulsões, ele costumava abaixar a cabeça e dirigir-se ao abrigo do velho quartinho da pensão.
Uma tarde, no entanto, ele apareceu no botequim muito sujo, esfarrapado, parecia ter passado dias na rua, e começou a cantarolar. Os clientes logo reclamaram e, quando o Arlindo, garçom do botequim, sugeriu que ele se retirasse, a reação foi diferente do esperado. Ao invés de acatar a ordem de retirada, ele puxou-o pelas mãos e arriscou alguns passos. Visivelmente acanhado, Arlindo travou as pernas no chão e apenas observou o sapatear destrambelhado, ainda que bem ritmado, daquele velho conhecido de vista, da noite. Incomodado com a falta de ritmo e com o acanhamento do garçom, ele corrigiu a postura - o máximo que podia - e contraiu o punhado de rugas que lhe cobria a face, expressando profunda irritação; Entre algumas palavras mais rudes, disse que não podia continuar daquela maneira, com parceiros sem talento, e saiu do bar, apressado.
Ao chegar ao largo da catedral, ainda irritado, ouviu os acordes e batuques de alguns músicos que costumavam tocar por ali, quase todo dia, entre o horário do almoço e o final da tarde. Em sua deixa, ele começou a acompanhar a música, cantarolando e sapateando, girando em torno de si mesmo. Ao olhar em volta, demonstrou novamente aquela profunda irritação e começou a fazer gestos bruscos, dando ordens para que todos seguissem os passos e fizessem parte do coro. Tentou mais uma vez, do início, sempre olhando para os que o cercavam e balbuciando ora palavras de ordem, ora de incentivo.
Um casal de estudantes, Vinícius e Patrícia, entusiasmados com a intervenção, começaram a participar: cantarolavam junto e dançavam conforme as instruções daquele senhor esfarrapado. Logo, Paulo, um garoto recém-saído da escola começou a captar a movimentação na câmera do celular e alguns de seus colegas começaram a seguir os passos indicados. Em cinco minutos, havia uma dezena de figurantes sob o comando daquele inusitado coreógrafo; Até mesmo a banda resolveu seguir as instruções. Aquela trupe aleatória, após dez minutos de ensaios e ajustes, atraiu dezenas de curiosos e executou um breve número musical, com uma só canção.
No entanto, ao fim desta apresentação, logo depois dos aplausos, a trupe acabou separando-se, pelos mesmos motivos que as trupes sempre se separam: divergências em relação aos cachês, incompatibilidade de horários, brigas internas, etc. Os dançarinos, em horário de almoço, tratavam aquela trupe como uma diversão, no máximo um projeto paralelo de um dia aleatório, algo para se contar aos amigos na mesa de bar. Inevitavelmente, acabaram desertando e seguindo suas vidas; Ele não se preocupou, arranjaria facilmente dançarinos melhores.
O grande problema foi com a banda. Alguns dos curiosos, ao final da apresentação, dirigiram-se ao protagonista, diretor e coreógrafo, para dar-lhe alguns trocados; Ele, no entanto, recusava-se a recebê-los e ainda respondia, com empáfia, que não trabalhava por migalha. Diante da recusa, os integrantes da banda viram escapar-lhes - das mãos e chapéus - diversas moedas, algumas notas de dois, pouquíssimas de cinco e até mesmo uma rara nota de dez.
Não demorou até que o palco se esvaziasse, e foi então que os músicos, sentindo-se injustiçados, aproveitaram para rediscutir as cláusulas do contrato. Carregaram aquele senhor, conhecido de rua, até o outro lado do largo, nos fundos da velha catedral, e o surraram, entre gritos de “velho desgraçado”, “burro” e outros termos menos apropriados. Nas pausas entre chutes, ele mal conseguia respirar, mas quando falou, implorou desesperado, pedindo por um dublê. Os músicos, no papel de juízes e carrascos, aplicaram a justiça da rua; E o deixaram por ali. Alguns sentiram um pouco de dó, principalmente pelas condições do sujeito que massacraram, mas não podiam se deixar levar por um sujeito qualquer, que recusou, em nome deles, uma noite em camas quentes - talvez até acompanhados.
No dia seguinte, envolvido em lençóis de algodão, com as feridas já limpas, mas muito doloridas e completamente roxas, ele tentou falar com Beatriz, a enfermeira que atendia o paciente ao lado, não conseguiu e urrou de dor, por conta do maxilar deslocado. Conformou-se com a idéia de que ficaria ali por dias, tomando sopa de canudinho, sem saber como chegara nem quando partiria. Passou a observar os outros pacientes e a bolar coreografias de acordo com os aparelhos e limitações de cada um. Ao final de três semanas, quando já conseguia falar e tinha dois dos três atos bem planejados, começou a conversar com os que o cercavam, dando instruções do que cada um devia fazer.
De início, Beatriz achou aquilo tudo muito inusitado, engraçado, mas começou a preocupar-se na época em que se iniciaram os ensaios. Alguns dos pacientes, dos poucos que seguiram as direções, tiveram considerável piora em suas condições clínicas. Por esses agravos, acabaram, em um primeiro momento, mudando ele de ala. Contudo, depois de repetir-se a situação com alguns pacientes da segunda ala, tiveram certeza de qual era o foco daqueles problemas e, para pôr um fim à situação, o isolaram.
Alguns dias depois, devido ao alto custo de mantê-lo sozinho em um apartamento, ele acabou recebendo alta. Antes de sair, Beatriz, sabendo que ele ainda não estava exatamente curado, questionou-lhe se havia alguém para avisar, para que viesse buscá-lo, mas ele não soube responder. Depois, perguntou como ele voltaria para casa, mas ele já estava saltitando para fora, acostumado que estava após dois meses com a muleta. A enfermeira, apesar de sentir-se comovida, retornou a seus afazeres e logo esqueceu aquele sujeito arrebentado, que conhecia pela ficha médica e por uma ou outra agulhada no braço.
Ele chegou à praça principal pouco depois do início da chuva. Após a longa caminhada, sentia dores por todo o corpo, principalmente nos braços. Todavia, sendo uma estrela, não se deixaria abater por estes pequenos incômodos. Começou a arriscar alguns passos, com a muleta, enquanto tentava cantar; Não demorou até que ele se desequilibrasse. No meio da praça vazia, caído sobre uma das pernas, com os braços estatelados, um para cada lado, e a orelha esquerda mergulhada em uma fina lâmina de água, só lhe restava tentar cantar, apesar de seu inglês pouco lapidado, entre pausas de profundo lamento e dor:
- I´m singing in the rain...

24.11.10

A cada um seu fardo

O patrão precisava de alguém que estivesse disposto a enfiar-se naquele macacão felpudo, colocar aquela peruca com forro de espuma e que, tal qual uma costela embrulhada em celofane, permanecesse ali, na frente da loja, cozinhando por várias horas. Demoraram a encontrar um corajoso - ou louco - e, em cima da hora, sem outra opção, o primeiro candidato foi logo efetivado.

Ele, que só estava ali porque também não tinha outra opção, chegou as oito e meia e desde as nove da manhã estava fantasiado, balançando uma placa com o novo slogan e observando as pessoas passarem indiferentes. Uma ou outra criança animava-se ao avistá-lo, mas todas mantinham-se de mãos dadas com as mães - nenhuma criou coragem para largá-las e aproximar-se um pouco mais. Mas também, com aquele rosto vermelho de ressaca, coberto de rugas, por onde escorriam rios de suor, e o olhar desesperado, apontado para os carros passando na rua e, vez em quando, para o relógio-termômetro da praça, não inspirava lá muita confiança. Além disso, aquele corpo todo, muito magro, tremia todo, incontrolável.

Às três da tarde, parou uma hora para o almoço, ali mesmo, nos fundos da loja, onde recebeu uma quentinha com arroz feijão e mistura. O moço até perguntou se ele queria salada, mas não fazia questão não. Comeu pouco, menos da metade, e largou a quentinha aberta, no canto da escada, onde sabia que viria comer um vira-lata que espreitava. Chamou de volta o moço que cuidava das coisas por ali e pediu um adiantamento, com a desculpa de aproveitar o resto da pausa para resolver um assunto ali na vizinhança. Aquele rapaz bem apessoado, de camisa, calça e sapato - já com a gravata um pouco frouxa, tinha cara de cansado, olheiras fundas e suava bastante. Após procurar um pouco na carteira, tirou dali uma nota amassada e resolveu logo o problema do palhaço.

Com aqueles dez reais no bolso, na frente da loja, ele reparou novamente no relógio-termômetro, fez as contas, com certa dificuldade, e concluiu que dava tempo. Partiu para a esquerda, cruzou a avenida, margeou a praça equilibrando-se sobre o meio-fio - um de seus passatempos prediletos - e foi dar com os cotovelos no balcão verde-claro do boteco do Seu Coisinho, que era o nome que ele dava para todos os anônimos donos de bares. Esse Seu Coisinho, como todos os outros, tinha bigode, mas era mais gordo que a média e usava uma camisa azul sobre uma camiseta branca. Naquele muquifo dois por três, o calor era tanto que o suor já manchava a camisa azul, deixando-a com duas marcas azul marinho sob os braços.

Algumas doses depois, retornou à loja e já era outro sujeito, já não tremia mais a mão. O vermelho do rosto abria espaço para um sorriso desalinhado e, além de segurar a placa, agora ele dançava. Estava tão empolgado, ainda mais vestido de palhaço, que resolveu animar a platéia. Dirigia-se aos pedestres, cantando e contando piada, tropeçava nas próprias pernas e cambaleava, perdia a peruca, ao tentar pegá-la derrubava a placa e acabava, por fim, lutando para pegar as duas e permanecer em pé.

Seria um perfeito Carlitos, não fosse o cheiro de caninha e os gestos bruscos, desmedidos e ameaçadores. As mães, assustadas, atravessavam a rua falando para as crianças não olharem. Os pedestres passavam com presa, tentando evitar que fossem abordados, e quando não conseguiam, chegavam até a empurrá-lo, antes que ele continuasse borrifar saliva para todos os lados enquanto falava, quase gritando.

Os dois seguranças, também cansados, embrulhados em ternos escuros e suando a bicas, não demoraram a perceber a confusão se formando, mas só tomaram uma atitude quando o patrão ordenou ao moço, pelo rádio, que cuidasse daquilo também - e bem rápido. Mesmo sem ser visto pelo vidro escuro, aquele senhor com nó duplo na gravata, ainda engomada, conseguia ver tudo lá de sua sala. Sem outra opção, o moço chamou os seguranças, que pegaram o palhaço pelos braços.

Ao saber que estava dispensado, ele subitamente parou de sorrir, fez as vezes de arrependido, triste, e pediu para que o soltassem. Todavia, logo que afrouxaram-lhe as amarras, zarpou a sapatear, cantarolando novamente.

Enquanto os seguranças andavam atrás dele, as crianças e mães permaneciam estáticas, em um fino equilíbrio, enquanto os primeiros tentavam aproximar-se, elas só queriam distância. Após dar uma volta por toda a loja, com o moço tentando convencê-lo a devolver a fantasia e partir, dizendo até que receberia todo o valor combinado, ele resolveu equilibrar-se novamente no meio-fio e desafiou os seguranças, seus perseguidores, a arriscarem-se na travessia.

As crianças riam da situação e as mães, no fim de tarde, já um tanto cansadas, castigadas pelo sol forte e pelas tarefas diárias, deixavam-nas deslizar pelas mãos suadas para aproveitar o pequeno espetáculo. Os seguranças, no entanto, sentindo-se ridicularizados, após serem avisados pelo rádio que se não dessem conta desse palhaço, podiam ir embora junto com ele, perderam a paciência e, sem ver outra alternativa, tentaram agarrá-lo em um bote rápido.

Foi o balanço da corda bamba, e as mãos suadas deslizaram pela fantasia, sem conseguir segurá-la, e o palhaço cambaleou, girou os braços para trás e, por fim, pousou na pista. O motorista do ônibus, apressado e estressado, por ter que fazer o trabalho dele e do cobrador ao mesmo tempo, embrulhado em seu uniforme, trancado naquela lata com dezenas de pessoas, também suava muito, e, bem na hora, para azar do palhaço, separava um troco do maço.

22.11.10

Negação

Tentando conter, sem sucesso, a ansiedade - como se a apertasse contra o peito com as duas mãos, ela comentava:

- Esses moleque tão só brincando, pregando peça, vão se espocar de rir quando ele levantar

A cabeça do menino, carregado com pressa ladeira abaixo, balançava em negação

19.11.10

Para poucos

Já era noite e a lua sorria, ainda que meio amarelada e entrecortada por algumas nuvens de chuva. Uma ou outra estrela despontavam naquele céu encoberto - de vez em quando era avião, mas a gente percebia logo a diferença. Entre as outras luzes por ali, só os vagalumes e o nosso lampiãozinho, desses de pilha mesmo, já que eu morro de medo de mexer com aqueles a gás.

Com a maré baixando, o mar afastava-se cada vez mais do cantinho onde nos assentamos, perto do coqueiro solitário, que era para ficar mais fácil de achar a trilha para o camping na hora que desse vontade de dormir. Ficamos ali sei lá quanto tempo, bem quietos, só observando o mar, ouvindo as ondas quebrando cada vez mais longe e os grilos cantando cada vez mais baixo. Vez ou outra, um siri deparava-se conosco e, um tanto assustado, como bichos ariscos que são, saia correndo de volta pra o lado de onde tinha vindo.

De repente, ela levantou-se para dizer que precisava fazer xixi. Eu percebi logo que ela estava em dúvida: devia fazer no mar ou percorrer toda a trilha na ida e na volta? Aí, para incentivar, eu falei para fazer por ali mesmo, era só pegar o lampião e andar em frente até achar a água. Um pouco constrangida - mas em parte aliviada - ela acatou a sugestão, pegou o lampião, o levantou acima da cabeça e seguiu em direção ao mar.

E foi naquele momento, tão ao acaso, assim que ela distanciou-se, que o espetáculo começou. Naquela praia vazia e escura, enquanto ziguezagueava para desviar dos siris curiosos e das águas-vivas abandonadas pelo mar, o único foco de luz estava irradiando dela e formava a sua volta, na areia, uma circunferência perfeita. Para mim, ela era uma estrela, em um número impecável de sapateado, seguida de perto por um holofote que vinha lá do alto, não sei de onde; Talvez fosse da lua, que, naquela hora, sem conseguir conter-se, sorria abertamente.

18.11.10

O cafajeste

Com o tédio beirando os limites da sanidade, ela olhava para cima, desesperada, com o rosto todo contraído. Ao lado, na mesa, a mãe continua a conversar com uma amiga. Ela tentou armar uma birra, mas pelo olhar da mãe, aquele de castigos passados, desistiu logo. Vencida antes mesmo da batalha, decidiu prestar atenção no que falava aquela moça que estava do outro lado da mesa:

- Era sempre "minha princesa", "querida", "meu amor" - fez uma breve pausa para passar o lenço na ponta do nariz - Ele só não queria trocar os nomes!

Nesse instante a garota ficou intrigada com a situação e passou a prestar atenção na história. Permaneceu em silêncio durante o resto do desabafo - incluindo as sessões de descarrego e consolo.

No trajeto até o apartamento, ela permaneceu quieta - a mãe até chegou a ficar preocupada, mas depois achou que era sono. Ao chegar, foi direto ao quarto do casal, onde encontrou o pai já de pijama, deitado na cama e lendo um livro. Muito séria, ela disse:

- Oi, pai.

- Oi, minha princesinha!

Ela abaixou a cabeça, emburrada, e saiu do quarto resmungando:

- Cafajeste...

17.11.10

Compasso

Enquanto cruzo a cidade a caminho de casa, ele me segue, sorrateiro - quando me dou conta, já está ali

Eu até que gosto da companhia e, se acabo me apressando, trato de estalar os dedos, bater palma ou assobiar, tentando atraí-lo de volta

Nessa cidade de tantos ritmos, este é o que me segue - e, bom, tenho que admitir: é também o que eu tento acompanhar

16.11.10

Fobia

Para ele, eram iguais aranhas: ao menor descuido, estaria preso em suas teias e eles avançariam sobre seu corpo, por caminhos sinuosos, despejando o veneno da imoralidade - tal qual o pastor explicou.

Ao avistar um suspeito - ou um grupo deles, forçava a vista, pondo foco no perigo e tratava de juntar a arma que fosse - capacete, pedaço de pau ou barra de ferro, o que estivesse mais perto, para surpreendê-los em pancadas. Em último caso, sem qualquer arma ao alcance, pisava e dava chutes, perseguindo-os pelos cantos da parede, decidido a esmigalhá-los e deixá-los ao chão, quase inertes, não fosse pelos espasmos das pernas e braços.

Antes de partir, escarrava no pré-defunto:

- Bicha de merda!







http://www.naohomofobia.com.br

11.11.10

Ninho de Chupins

Após adentrar a sala, girou a chave da porta quatro vezes e repetiu para si mesma:

- Precaução nunca é demais!

Logo depois de conferir as janelas de todos os cômodos daquela enorme casa vazia, erguida pela própria família, em área hoje cobiçada pela especulação imobiliária, ela programou a televisão para desligar em meia hora, apagou a luz e deitou-se.

Antes de fechar os olhos, apalpou a cabeceira para pegar o aparelho celular, esperançosa de encontrar por ali uma chamada não atendida ou mensagem recebida - nunca tinha nada, nem sinal de nenhum dos filhos. Então, ela encolheu-se num canto estreito da velha cama de casal, abraçando os dois joelhos e, por fim, despediu-se mais uma vez da casa - certa de que, um dia, cairiam juntas.

10.11.10

Literófila

Carregada pela insistência

no bar ou na balada

folheava pretendentes intragáveis


Nunca havia entendido

por que é que trocavam aquilo

pelas páginas de um bom livro

9.11.10

Condecorados

Após as duras batalhas
do cotidiano

os veteranos reúnem-se
nos bancos da praça


Entre os cerimoniais
e as partidas de dominó

exibem orgulhosos
profundas cicatrizes

medalhas de honra ao mérito

8.11.10

Vitória-régia

Tal qual a nata

que era como se julgava

ela não se misturava


Com ares um tanto blasé

apenas flutuava, pomposa

sentindo-se a dona do lago

5.11.10

Culatra

Ao chegar em casa naquela noite fria, ainda mais tarde que de costume, já abriu a porta reclamando:

- Quantas vezes vou ter que falar para não deixar o gás ligado?

Logo que entrou no pequeno quarto, de janelas bem fechadas, as palavras voltaram-lhe pela boca, com toda a força, arranhando-lhe a garganta

3.11.10

Sinopse

Aquela história de aventura

em pouco tempo

quem diria


virou romance de cabeceira

1.11.10

A porta aberta

Já era a terceira vez naquela mesma semana que eu ia até o 702 para arrumar a televisão do seu Alício. E era sempre a mesma coisa: eu chegava, batia à porta, só por educação, porque sabia que ficava aberta, o velho gritava lá de dentro para entrar e, só então, eu entrava, pedindo licença, para dar de cara com a sala-cozinha vazia, com a televisão no canto da janela e com os cabos da antena novamente embaralhados.

Ao notar a nova confusão, perguntei, em bom tom, para que fosse ouvido do quarto:

- Seu Alício, o senhor andou mexendo aqui de novo, não foi?

- Eu tentei consertar, ficou tudo chiado.

Era a mesma coisa, cada vez mais frequente: eu deixava a televisão funcionando e o safado ia lá mexer em tudo. Comecei a imaginar que era até de propósito, que ele estragava o serviço só para ter uma visita, com quem trocar algumas palavras, dar um pouco de vida àquele sarcófago de dois cômodos. Ele até recebia visitas, uma vez por mês, gente da família, mas eles nunca subiam, ficavam no carro e só um homem vinha até a portaria para chamá-lo, devia ser filho dele, tinha uns quarenta, cinquenta anos. Mas já deve fazer quase dois meses que seu Alício tem pedido para falar que ele não está. Devem ter brigado, aí o velho desandou a ficar carente e eu, bom, eu estou aqui, desenrolando cabos e tentando ouvir o que ele fala lá de dentro.

Após desfazer a confusão de cabos, antes de sair do apartamento, tentando evitar de ter que voltar ali em um ou dois dias, resolvi intimá-lo:

- Seu Alício, o senhor pode vir até a sala, por favor?

- Precisa mesmo?

- Para ver como é que tem que deixar os cabos.

Um pouco surpreso, ele relutou, tentou dar uma desculpa, resmungou, mas eu insisti, falando que era rapidinho, e ele acabou cedendo.

Quando seu Alício apareceu na sala-cozinha, eu olhei imediatamente para os cabos da antena, bem no caminho para a única janela do apartamento, e minhas pernas estremeceram. Ele vinha vagarosamente, apalpando as paredes e móveis, falando comigo, mas olhando para o meio da sala, estava completamente cego. Saí sem bater a porta.