18.2.17

II Prêmio Escambau de Microcontos

O Prêmio Escambau de Microcontos, organizado pelo grupo Escambanautas, de Fortaleza, tem uma dinâmica muito interessante de participação: são lançadas palavras-tema diárias e, semanalmente, os organizadores selecionam os 35 melhores textos. O concurso dura 28 dias e atrai participantes de todos os cantos do país; além de alguns autores e autoras além-mar!

Na segunda edição do prêmio, realizada em janeiro de 2017, três de meus microcontos, com as palavras Semente, Destino e Circo, foram selecionados entre os melhores do certame.

17.2.17

Caixinha

Naquele aniversário, ganhei de presente uma caixinha quadrada. Fiquei decepcionada, emburrada.

Então, minha avó aproximou-se, encaixou um pedaço de metal em um canto e começou a girar.

Quando ouvi os primeiros estalos, abri bem os olhos. Quando vi a bailarina, enchi-os de lágrimas.

16.2.17

Insípido

Quando viu aquela mão desconhecida estendida, oferecendo um pequeno quadrado colorido, achou que fosse um chiclete, algum doce; mas não tinha gosto.

Horas depois, no momento em que as gotas da chuva em cores vivas começaram a explodir em notas musicais na areia movediça da praia, tudo fez sentido.

15.2.17

Famintos

Não me esqueço daqueles olhos desconfiados, de quem já viu e sofreu muita maldade. Apesar da fome, demorou a aproximar-se, arisco. E, quando veio, olhou-me nos olhos, através deles; como se buscasse desvendar minhas intenções.

Somente após comer, quando caiu no sono, é que voltou a ser criança.

14.2.17

Acolhida

Aqueles que o cercavam ordenaram que a calasse, mantivesse encarcerada e, se necessário, matasse, para que nunca mais se manifestasse.

Subversivo, manteve-a escondida, sob seu amparo.

Todos os dias, seguia ao trabalho encenando severidades. Ao retornar ao lar, deixava a criança divertir-se, livre.

13.2.17

Coice

Ele era criança ainda, não tinha mais de seis anos. Ouviu o barulho e, quando se aproximou do cercado dos cavalos bravos, viu a marca da ferradura no rosto disforme; e o sangue que começava a verter.

Nunca mais esqueceu aquela cena. Ainda ouve na memória aquele grunhido, um ronco bestial de dor.

12.2.17

Causos

Seu Jorge, ferreiro de renome, retornava ao lar quando um rapaz austero, meio coxo, abordou-lhe em uma esquina:

– O senhor aí, forjador, cuja fama atravessa fronteiras, já fez ferradura para bode?

– Bode? Bode não usa essas coisa... Pra que diabos eu faria isso?

– A princípio, apenas para um...

11.2.17

Sororidade

No ambiente de trabalho, era uma exímia domadora de ignorantes. Não se afetava pelos burburinhos entre os subordinados: dominadora, mal-comida, entre outros ainda piores.

Apesar disso, desabou em lágrimas, de empatia e raiva, quando viu o próprio filho, em frente ao colégio, humilhando uma colega.

10.2.17

Mais valia

O circo precisava de novas atrações; mas tudo que tinha a oferecer era moradia precária, comida e água.

Foi então que o domador teve uma ideia. Espalhou pela floresta centenas de cartazes: "O trabalho dignifica o animal! Troque a instabilidade da selva pela segurança do lar e garantia de ocupação".

9.2.17

Quimeras

Quando enfim despertou, percebeu-se cercado por quimeras.

Cada ser tinha os traços, a figura humana. No entanto, para quem reparasse nos detalhes, ficava evidente a verdade: eram monstros, com apenas alguns resquícios de humanidade.

De súbito, levou as mãos sobre o rosto; e respirou aliviado.

8.2.17

Autodidata

Ele era autodidata; e extremamente dedicado. Cada vez que se interessava por um tema, arregaçava as mangas, botava as mãos na massa e ia a fundo, destrinchando a matéria e dissecando os conteúdos.

Foi preso quando estava prestes a publicar um tratado revolucionário sobre anatomia humana.

7.2.17

Refreado

Até aquele dia, havia sempre andado na linha, contido. Mas a dura realidade, que lhe foi apresentada em uma sequência penosa de violência, impunidade e impotência, foi mais do que o suficiente para desequilibrá-lo.

Descarrilou, como um trem desgovernado; e seguiu sem rumo, à margem de tudo.

6.2.17

Retorno

Quando os trens partiram lotados, todos ficaram receosos.

Mas foi apenas quando voltaram, vazios e insaciados, que o desespero abateu-se sobre todos que ali estavam, confinados.

5.2.17

Monstros

Ao partir para o Cabo das Tormentas, estava certo de que encontraria monstros hediondos nas águas bravas.

Quando, por fim, aportou no Novo Mundo, com os porões abarrotados de escravos, deparou-se com águas plácidas, imaculadas, que refletiam com perfeição a brutalidade irreconhecível daquele rosto.

4.2.17

Rebentar

Encoberto pela noite de nuvens densas, mantinha o cabo do punhal sobre o peito, junto à respiração em ritmo lento, mas firme. Quando o sujeito se aproximava, um clarão irrompeu as trevas.

O lampejo do raio revelou o cenário armado; e o rebentar do trovão abafou o grito de desespero.

3.2.17

Aflição

Ela passava o tempo suspirando, deitada, encolhida; com os joelhos dobrados sobre o peito comprimido.

Para desafogar a ansiedade, contava os dias e horas, em marcas feitas à unha, na parede da solitária.

2.2.17

Detalhista

Metódico, beirando o compulsivo, havia forrado o chão e os móveis daquele cômodo com plástico e jornal.

Ingênuo, sem nenhuma prática, não suspeitava que o sangue respingaria nas paredes; e até mesmo no teto.

1.2.17

Destino trançado

Quando a vizinha deu a ideia de desfazer-se das madeixas e dispôs-se a acompanhá-la ao salão, não imaginou que houvesse, por trás dos sorrisos, má intenção.

Ao deparar-se com as velas negras ao redor de sua própria foto, com a boca costurada em trança de cabelo, revisou trêmula o dia anterior.