30.4.17

Cicatrizes

Os meninos da rua exibiam as cicatrizes como medalhas por bravura:

– Essa aqui foi de skate.

– Cortei numa pedra no fundo do rio.

– Pulando o muro pra pegar a bola.

– Explorando a construção abandonada.

No entanto, quando perguntaram ao novato onde havia conseguido a dele, ele soluçou:

– Meu pai...

29.4.17

Normal

Era assustadoramente comum: não havia nenhum traço marcante; uma cicatriz que fosse, olhos faiscantes ou muito opacos, nariz torto, um tique, trejeito; nem ao menos um tom de voz ou respiração brusca que levantassem suspeitas.

Havia apenas uma maldade incerta, dessas que se encontra em qualquer um.

28.4.17

Evidências

Usava manga comprida sobre as marcas nos braços.

Os hematomas no rosto, escondia com maquiagem.

A echarpe encobria os ferimentos no pescoço.

Sabia bem o que não se podia disfarçar; e fez o corte de uma bochecha a outra.

A cicatriz o acompanharia pelo resto da vida. Em cada espelho, ele a veria.

27.4.17

Ilusionista

Embaralhava os elementos, tentando manter a atenção da plateia.

Em um instante exibia, no outro escondia. Explicava, mas logo depois confundia.

Ao final, cada um dizia ter visto algo diferente. Algumas vezes até discutiam.

O truque era simples; não tinha qualquer magia: era só misturar palavras.

26.4.17

Fulgor

Aproximou-se lentamente, dividido entre o medo e o fascínio.

Os olhos cintilantes refletiam aquela magia. Estendeu a mão para tocá-la; mas logo recuou, urrando de dor.

Da dor passou à ira; e lançou-se ao ataque, até extinguir as chamas a pauladas. Ainda não estava pronto para aquela novidade.

25.4.17

Frágil

Ela era muito sensível e não conseguiu conter-se após os gritos do marido.

No entanto, logo se recompôs; ainda tinha que limpar a casa toda, enterrar o corpo, queimar o lixo e agir como se nada tivesse acontecido.

24.4.17

Esgotamento

Ela chorava baixinho, receosa, quando se aproximou da irmã mais velha e confidenciou o motivo do pranto. Após uma frase e meia, a irmã exclamou, sem qualquer ternura:

– Mas é só um pouco de sangue! E vai vir mais, todo mês!

Os gritos de desespero foram ouvidos por toda a casa.

23.4.17

O papel que lhe cabe

Durante a noite, cobria-se com o sangue quente que escorria do jornal popular.

Apesar do barulho dos tiros, zunindo a cada página, dormia tranquilamente; torcendo para não virar uma notinha de rodapé.

22.4.17

Vestígios

O fim do relacionamento foi um tanto conturbado.

Passou horas lavando a roupa suja; mas o sangue não saia.

21.4.17

Sitiado

Vi-me cercado por um bando de palavras ariscas, indomáveis.

Tentei dominá-las, contê-las em gaiolas ou jaulas; mas fracassei.

Acordei com um pé-de-vento espalhando os rascunhos pela sala; num farfalhar de páginas em branco.

20.4.17

Suicida

De súbito, ela atirou-se, deixando-me em silente desespero.

Eu queria gritar, mas não podia. Eu não sabia...

A palavra maldita, suicida, estava na ponta da língua.

19.4.17

Termodinâmica

Em meio à discussão, ele tentava, em vão, medir as palavras.

Não tinha noção alguma de física.

Mal sabia que palavra é matéria-viva; que, com muito calor, se dilata.

18.4.17

Simpatia

Ela era um pouco rude, indelicada, e tinha péssimas manias. Não tinha sequer um traço de simpatia.

Vivia botando palavras na boca dos outros. Depois costurava os lábios e os enterrava no quintal.

17.4.17

Desalento

Após algum tempo, desisti.

Para meio entendedor, não havia palavra que bastasse.

16.4.17

Língua solta

Mantiveram-me amordaçado, não queriam me dar a palavra.

Após sinal do chefe, liberto, dei-lhe a minha palavra; e ele, então, pediu para ter uma palavrinha comigo, em reservado.

Os capangas titubearam, mas ele cuspiu palavra de ordem!

Quando ficamos a sós, arranquei dele as últimas palavras.

15.4.17

Dupla jornada

Andava sempre com aquela bolsa de couro recheada com alicate, bisturi, lixa, tesoura e pinças.

Passava o dia extraindo unhas encravadas, removendo peles, lixando calos, cortando daqui e puxando dali. Durante a noite, o serviço era bem parecido, mas o patrão era um agiota.

Tratava calos e calotes.

14.4.17

Domínio

Vivia pisando em ovos. Sentia-se mal, angustiada; e desequilibrava-se sobre os saltos, com receio de que se rompessem.

Mas pagavam bem.

13.4.17

Impacto

O impacto foi tão violento que o plasma nuclear jorrou em golfadas para além da superfície. A crosta rachada, esfarelada, dispersou-se em estilhaços, disparados a grande velocidade.

O comandante não celebrou a vitória. O senador tentou alentá-lo:

– Não se constrói um Império sem quebrar ovos.

12.4.17

Caroço

Eu andava tenso e, durante o banho, senti um nódulo nas costas. Esgotado, tomei um analgésico e dormi. No outro dia, havia um calombo no local; e incomodava, doía muito! No desespero, cutuquei com uma faca. A pele rasgou e saiu dali um ovo; dentro dele, o pequeno demônio já gritava:

– Queime tudo!

11.4.17

Eclosão

Após os tremores, rachaduras rasgaram a capital. Enquanto prédios iam ao chão e aquela imensa criatura brotava dali, todos corriam desesperados.

Sob um viaduto, três pessoas buscaram abrigo. Quando se reconheceram, riram. Um deles comentou:

– Vocês também se conhecem? Esta cidade é mesmo um ovo.

10.4.17

Pregador

Sobre um caixote de madeira, no meio da praça, vociferava, eloquente, cortando o vento com as mãos. Em seus discursos inflamados, trazia à tona, das profundezas, os maus presságios de um mundo pestilento.

Era um soldado fanático, idealista, travando guerra de trincheira contra inimigos invisíveis.

8.4.17

Crônica

Engolia oito pílulas por dia: uma para acordar; uma para comer; uma para sair de casa; uma para manter o foco no trabalho; uma antes e uma depois da academia; uma para gozar; e outra para dormir.

Entupido de remédios, ainda sentia-se mal. O que tinha não era doença, era sina; e a vida não tem cura.

7.4.17

Colateral

O remédio da pressão piorou a circulação; o da circulação complicou o coração; o do coração corroeu o estômago; o do estômago deu pedra no rim; sobrecarga do fígado; dor nas juntas.

E por fim, naquele equilíbrio tão frágil, de folha de outono em galho seco, um vento gelado e a pneumonia o levaram.

6.4.17

Lucidez

Sonhar com a guerra, naqueles tempos em que só se conhecia a paz, era como dar à luz os horrores das batalhas entre os homens.

Ao acordar, desesperada, contraiu-se, como se tentasse conter aquilo tudo no mundo das ideias, e suplicou: que a Grande Mãe não permita nunca que as mulheres percam o poder!

5.4.17

Referência

No calor da discussão, antes de virar as costas, disse que encontraria milhares iguais a ela.

A profecia cumpriu-se. Desde então, em cada mulher que encontra, há alguma coisa que é dela.

4.4.17

Estilhaços

Após libertar-se daquela relação, fez da mudança um ritual de passagem.

Ao abrir a última caixa e deparar-se com o veleiro aprisionado na garrafa de vidro, não teve quaisquer dúvidas. O fundo da garrafa cedeu nas primeiras pancadas; e, enfim, o vento soprou a favor, com promessas de novos rumos.

3.4.17

O beijo

Aquele beijo foi tão intenso que permaneceria cravejado na memória até o último suspiro.

Depois daquele momento, ele sabia, no entanto, que se tratava de uma questão de horas, talvez dias. A máfia não perdoa.

2.4.17

Epidêmica

Em meio à discussão, sentenciou, com veemência, que homossexualismo era doença

Inflamada, a amiga surpreendeu-a com um beijo

Horas depois, já era impossível conter a febre

1.4.17

I Prêmio IFSC de Literatura

Em outubro de 2016, vislumbrei um desafio: o IFSC publicou um edital de fomento a atividades culturais. O edital previa o aporte de R$ 2.170,00 para financiar atividades culturais a serem realizadas entre os meses de novembro e dezembro daquele mesmo ano.

Com esse valor em mente, comecei a avaliar possibilidades, angariar parceiros e, no final das contas, julguei que seria possível realizar um concurso literário e publicar uma coletânea.

Os autores André Kondo e Edgar Borges, parceiros de longa data no blog Concursos Literários, abraçaram a causa; em especial o André, responsável pela Telucazu Edições, que se comprometeu a ceder gratuitamente o ISBN para a obra. Além disso, a professora Estela se comprometeu a revisar a obra e a bibliotecária Karla se comprometeu a elaborar a ficha catalográfica. Outras pessoas também se envolveram a colaboraram para o sucesso do projeto, com destaque para a Fabi Schrodi, o Daniel Augustin Pereira e também para os estudantes bolsistas do projeto: Luan, Thaline e Thayna.


Após pouco mais de duas semanas de inscrições, recebemos 349 textos e, após a eliminação de 25 deles, pelo descumprimento do regulamento ou por equívoco dos autores no processo de inscrição, 324 foram avaliados pela Comissão Julgadora.

O objetivo da Comissão era selecionar 60 textos para compor a coletânea do I Prêmio IFSC de Literatura. No entanto, selecionamos 69 textos. Dos 69 autores e autoras selecionados, 44 nunca haviam publicado nenhum texto.

A minha trajetória na literatura começou com o saudoso Concurso Nacional de Contos Luiz Vilela; e foi muito interessante poder abrir espaço, através do Prêmio IFSC, tanto para autoras e autores que já circularam por aí quanto para outros que estão vivendo a mesma experiência que vivi lá em 2007, quando vi meu primeiro texto publicado.

Espero ter outras oportunidades para organizar e editar obras de diversos autores e autoras. Que venham os editais! E que se mantenham as parcerias!


Mais informações:
http://premioifsc.blogspot.com.br/