24.8.10

Absolvidos

Ao final do julgamento, levando em conta a insuficiência das faculdades, e o notável estado de inconsciência, decidiram que a população não tinha culpa alguma

20.8.10

Subexistência

Bem, sabe como é trabalhar na terra por esses dias: a parte que me cabia já estava pra lá de apertada. Eu não dava mais conta de tirar o sustento da família daquele pedaço de terra. Até daria se a minha senhora não fosse tão firme na exigência dos garotos irem à escola todo santo dia, ao invés de ficarem por lá me ajudando. Se não bastasse isso, cada dia tinha uma doença nova na lavoura e, juntinho com ela, aparecia logo um novo "defensivo agrícola", coisa que na minha época a gente chamava de veneno mesmo, mas vai entender esse mundo. Falando nisso, depois que vieram essas doideiras do clima então, aí é que não brotava mais nem capim para dar de comer ao bode. Não tive outra solução, consegui o melhor preço possível na terra - aquele punhadinho de pouca coisa que a gente chamava de casa - e partimos para a capital, mentindo para os meninos que lá havia de ser bem melhor para os estudos e que, logo logo, voltaríamos para a nossa terrinha. E foi mais ou menos isso. Um pouquinho mais, na verdade, porque eu resumi, mas cá estamos e eu, para ser bem sincero, estou um pouco aliviado. Acho que tomei o rumo certo. E você, como está?

19.8.10

Engano

- Alô!

- Boa tarde, o senhor Seixas encontra-se?

- Quem quer falar com ele?

- Falo em nome do Banco Rio Sul.

- E por que é que não pode falar comigo?

- Desculpe-me, senhora, mas devo falar diretamente com o senhor Seixas.

- Olha aqui, mocinha, tudo que é do interesse do Alberto é também do meu interesse. Saiba você que sou a senhora Seixas e que, apesar de ainda não ter passado tudo no papel, somos muito bem casados!

- Peço desculpas novamente, mas eu preciso falar com o senhor Seixas, temos alguns assuntos para resolver e, para isso, preciso que ele confirme alguns dados, senhora.

- Não me chame de senhora, mocinha. Eu devo ter quase a sua idade!

- Desculpe, mas foi a senhora...

- Senhora não!

- Desculpe. Foi você que me disse que era a senhora Seixas.

- Era e ainda sou!

- Tudo bem, mas, ainda assim, preciso conversar com o senhor Seixas.

- Mas quanta insistência, trate logo desse tal "assunto", seja ele qual for, comigo mesma. Afinal de contas, o que é que você precisa? Deu algum problema no cartão? Alguma coisa nos investimentos? O que foi?

- Trata-se de uma dívida, senhora.

- O que foi que você disse?

- Desculpe novamente, não tive a intenção.

- Não, não isso. Você disse que tem uma dívida?

- Sim, senhora! Eu trabalho na área de cobranças. O saldo devedor do senhor Seixas está acima do tolerável pelas políticas da empresa há alguns meses. Por isso estamos ligando para informar que os cartões serão suspensos se não negociarmos esta dívida.

- Ah, mas isso você que resolva lá com aquele traste. Eu não tenho nada a ver com esse sujeitinho!

18.8.10

Quero-queros

Ao nascer do sol, o bando de quero-queros posiciona-se em círculo, de maneira que todos aproveitam ao máximo o brilho daquele momento

Algumas horas depois, aglomeradas, as pessoas lutam entre si por um lugar ao sol - apenas para criarem sombras

17.8.10

Volátil

As revoltas de hoje em dia são qualquer coisa parecida com álcool em pratos de vidro

Altamente inflamáveis, mas nunca afetam o que está em volta

E além disso, muitas vezes nem se consomem, evaporam

16.8.10

Insensível

Diante do inverno rigoroso

com a porta bem fechada


e abafadas pela ducha


até as paredes choram

13.8.10

Realizado

Após cinco meses de privações - a aposentadoria mal dava para aluguel e comida, que dirá os remédios e os pequenos desejos, finalmente conseguiu juntar a quantia que precisava. Resgatou do fundo do armário o embrulho da camisa do natal passado - transformado então na sacola das economias, contou novamente todas as moedas, para ter certeza de que não havia se equivocado na última contagem, e dirigiu-se à rua da Alfândega, pólo das lojas de cacarecos chineses, tecidos e roupas.

Ao entrar na loja, lembrou-se do sol invadindo-lhe o quarto todo dia pela manhã, dos faróis dos carros da rua iluminando o teto durante a noite e de todas as tentativas desesperadas e frustradas de pendurar algum lençol, toalha ou qualquer outra coisa na janela. Quando a vendedora perguntou se poderia ajudar, respondeu entusiasmado - vislumbrando seu lugar à sombra:

- Eu quero a melhor cortina que você puder me arrumar a preço justo.

E completou, enfático:

- E nada dessas persianas, raladores de luz! Que dessas porcarias eu já tive, não funciona e ainda quebra!

12.8.10

11.8.10

Bonsai

A cada vez que ousava ultrapassar seus limites, acabava sendo podado pela raiz

Com o tempo, além de não produzir frutos, suas folhas ficaram secas e amareladas

Imaturo, incapaz de libertar-se do próprio vaso, definhou ali mesmo, no sofá da casa dos pais

10.8.10

Atraentes

Aqueles olhos interesseiros percorreram toda a mobília, antes mesmo de chegar à sala. Ao depararem-se com os talheres de prata, quase deixaram de reparar na prataria e nas taças

Sentiram-se em casa, no lar que queriam para seus deleites. Enfim, decididos, começaram a seduzir aqueles olhos tolos, apaixonados, na outra ponta da mesa

9.8.10

Asfixia

O medo tomou-me pelas mãos

e logo envolveu-me, ardiloso


em um forte abraço



apertado




sufocante

5.8.10

Propina

Um trocadinho

só pra molhar a mão


é assim que negocia

o bandido com o ladrão

3.8.10

Fachada

Comprometo-me pela causa

nas capas de revista


No entanto, desconheço

as reais consequências

da minha falta de ação