31.1.17

Desfiados

Quando passaram lado a lado, na entrada do mercado, não se esbarraram por detalhe. Na fila do caixa, os olhares não se cruzaram e, na saída, nem ao menos repararam um no outro.

Enquanto isso, na casa das Moiras, o gato endiabrado distraía-se com os fios da vida, desfazendo as tranças do destino.

30.1.17

Demanda

Naqueles tempos sombrios, de ignorância desmedida, não faltava ocupação para diabo algum

Cada mente vazia, oficina diligente, demandava barbaridades

29.1.17

Ocupação

– Estudado eu não sou, não, seu moço. O saber que eu tenho é da vida e de exercer ofícios; Nunca me faltou ocupação, pois que sempre tive disposição de começar no rés do chão e ir subindo. Umas hora a gente cansa de tanto recomeço, mas a vida segue, né? O senhor não tem um serviço para mim aí, não?

28.1.17

Dançando com tubarões

Com os investimentos certos, criou súbitas fortunas e atraiu grandes investidores. No entanto, quando veio a crise, perdeu muito dinheiro, das pessoas erradas.

Para quem almejava ser tubarão, foi trágico, no final das contas, virar comida para peixe.

27.1.17

Espólio

Ele era um livro aberto; e os mais próximos não demoravam a desvendar suas intenções.

Quando perceberam que pretendia deixar seu reino de herança aos desvalidos e necessitados, irromperam em cólera. Para evitar o disparate, entregaram-no à morte e forjaram um novo testamento.

26.1.17

Ciúmes

E o livro de cabeceira, que costumava ser bastante reservado, ficou de orelhas em pé ao descobrir, meio que por acaso, que no cômodo ao lado– bem ali, cruzando o corredor– havia longas prateleiras, repletas de histórias já vividas

25.1.17

Sobressalto

Ao cair da tarde, a maré subiu e algumas ondas bravias vieram lamber-lhe os pés. Acordou assustado, levantou-se de um salto e correu atrás do chinelo, arrebatado pelo mar.

Quando finalmente resgatou os dois pares, virou-se para a praia vazia e, só então, lembrou-se: o pequeno tinha vindo junto.

24.1.17

Olhos de Ressaca

Desde o enterro de Escobar, não me acode imagem capaz de dizer o que foram aqueles olhos de Bento; o que foram e me fizeram. Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. Traziam não sei que fluido inconstante e grave, uma força de arrasar o que estivesse adiante, como maré brava que se levanta contra a praia.

23.1.17

Despachado

O juiz de plantão estava embriagado quando trouxeram o meliante sob custódia, requerendo que despachasse com prontidão e definisse a pena.

Ele urinou sonoramente, de porta aberta. Retornou à sala pitando um cigarro e, sem burocracia, expediu a sentença:

– Esse aí é reincidente, bota no "microondas".

22.1.17

Virtuoso

Naquela época, cada qual era, ao mesmo tempo, intendente, juiz e carrasco. Cada homem carregava em si o peso da lei.

Uns tantos envergavam, com tamanha responsabilidade. Mas não o reverendo Samuel Parris, cidadão virtuoso, dedicado a sua divina missão: livrar de todo mal o vilarejo de Salem.

21.1.17

Língua(s)

O amigo de além-mar contava extasiado sobre um passeio de gaivotas. Ela, inebriada, imaginava-o segurando fios com aves nas pontas, de carona até um cometa.

Quando ele mencionou o esforço para pedalar de volta à margem, ela retomou a razão; relembrou que se tratava de uma língua só, mas bifurcada.

20.1.17

Contra o vento

Era um exímio empinador de pipas, profissional; e tinha uma para cada ocasião: morcego azul para polícia; baratinha preta para caveirão; de biquinho vermelha para milícia; carrapeta roxa para facção rival; e gaivota branca para cessar-fogo.

No entanto, ficou obsoleto com a chegada do whatsapp.

19.1.17

Ciclos do Fogo

Passou quatro anos apagando incêndios, mas conseguiu auditar as contas e pôs a casa em ordem. Deixou até dinheiro em caixa, para mudar de fato aquele pobre povoado. No entanto, não conseguiu reeleger-se.

Ainda hoje, quando passa pela praça, desconsolado, o povo desdenha:

– Esse aí só fez lenha!

18.1.17

Locomotiva

Estufava o peito, soltando vapor pelas ventas, ao maquinar discursos separatistas. Apontava o fardo injusto que aquela região, locomotiva do país, estava condenada a carregar caso não se libertasse

Nunca citava, talvez por esquecimento, de onde vinha toda a lenha para manter o fogo aceso

17.1.17

Desolada

Os tratores insinuavam-se
com correntes nos entremeios

sobre o colo desnudo da Terra


Logo estaria toda lisinha

como se dizia adequado
às moças comportadas

- reclusas e recatadas

daqueles tempos

16.1.17

Desfecho

O espetáculo teve um encerramento súbito e dramático

O brilho do giroflex, em azul e vermelho, atravessava as janelas e incidia sobre a fumaça de narguile que ainda preenchia o espaço. No centro do palco, os sete véus– empapados de sangue, cobriam o corpo

15.1.17

Posfácio

Após meses de atraso, com a corda no pescoço por ter descumprido o contrato, enfim compôs o encerramento perfeito

Assim que finalizou a obra, enviou-a para os editores e partiu com pressa: tinha um destino trágico a cumprir

14.1.17

Plenitude

Naquela noite insólita

o eclipse lunar
foi simbólico


o encerramento da noite
sobre si mesma

o pôr da lua
escuridão plena


um momento propício
- sem sombras ou dúvidas

aos maus presságios

13.1.17

Apropriado

A semente brotou, criou raízes e folhas. De início, era um pouco incômodo, mas logo habituou-se.

As flores tornaram o fardo um pouco mais leve, mas logo percebeu que a questão era mais grave do que imaginava: a dúvida estava gerando frutos; que não tardariam a infestar-lhe as ideias.

12.1.17

Dúvida

Depois que se afastou da corporação, demorou algum tempo para habituar-se.

Não havendo hierarquia, restava a dúvida: como saber quem está certo e quem está errado?

11.1.17

Coragem

Admirava o avô e sua presença no palco. Um dia perguntou-lhe:
– Vô, você acha que eu tenho alma de artista?
A resposta veio rápida, como um bote certeiro:
– Alma é um vestido de seda que os covardes usam como se fosse armadura.
Ele ficou para sempre na dúvida: era mais incentivo ou descrença?

10.1.17

Alma

Logo após a primeira mordida, percebeu-se, enfim, plena.
Estava consciente de seu próprio corpo, do universo de possibilidades que a cercava, de tudo.

Deixou de ser um objeto, submissa; agora, teria seus próprios sonhos e devaneios, teria alma.

9.1.17

7.1.17

Vorazes

Eram, de fato
criaturas peculiares

de hábitos incomuns


alimentavam-se do caos
de todo tipo de fontes

e após pouco tempo
- sem qualquer processamento

expeliam palavras de ordem

6.1.17

Prática da Relatividade

Desde sempre
e até onde a vista alcança

tempo
e espaço

são
foram
serão

em qualquer direção
- ou sentido

relativos


quanto menos espaço
você ocupa

mais tempo sobra

(e vice-versa)

5.1.17

Fluidos

Estavam certos os profetas
que ninguém levou a sério

o progresso nos trouxe
a uma nova era:

são tempos líquidos

- talvez pastosos

o chorume acumulado
de milênios passados