14.12.09

Náufrago

Para não afogar-se nas águas turvas da realidade, agarrava-se aos sonhos, que estavam sempre à tona, com a esperança de chegar à terra firme.

13.12.09

O dono do banco

Sentei-me no único banco da praça que escapava do sol. Aquele que ficava bem de frente para o prédio comercial, um daqueles prédios de vidro escuro, com ar condicionado central, bunkers de proteção contra a liberdade e o ar puro. Ao menos era assim que eu via o prédio onde eu perdia oito horas diariamente, enclausurado.

Naquele horário o sol já estava mais baixo, mas, de terno e gravata, e ainda acostumado ao ar glacial do bunker, qualquer raio de sol ou bafo mais quente parecia derreter-me. Portanto, era convidativo aquele banco à sombra, uma raridade naquele horário, uma vez que a praça estava, como sempre, tomada por crianças saídas da escola e por diversos grupos de aposentados, que pareciam reunir-se ali para contar os vivos e lamentar os mortos. Lembro até hoje do dia em que reparei nisso pela primeira vez. Fiquei na praça até mais tarde, lendo um livro qualquer - provavelmente do Galeano - e vi uma senhora aproximando-se de um grupo e comentando: a Madalena não vem mais. A desesperança daqueles rostos cansados, abalados pela notícia, marcou-me.

Alguns instantes depois de sentar-me, mal havia dado tempo de encontrar uma boa posição para as pernas - já que só tinha tentado duas até aquele momento, um senhor veio caminhando em minha direção e disse:

- Você não tem outro lugar melhor para sentar?

Entendi aquilo como uma clara tentativa de tirar-me dali, mas decidi não abrir mão facilmente do meu lugar à sombra:

- Na verdade, tenho, mas nesse momento prefiro ficar aqui. Por quê?

- Esse é o melhor lugar para ver o pôr-do-sol.

- O senhor deve estar brincando, não é? Esse prédio enorme encobre tudo!

- Encobrir ele encobre, mas eu ainda consigo lembrar de tudo.

- Se o senhor vai imaginar, pode sentar-se em qualquer banco, são todos iguais.

Quando eu disse que eram todos iguais, ele franziu o cenho e elevou o tom de voz:

- Esse banco é diferente e esse banco é meu, seu moleque atrevido!

Diante da ofensiva, decidi não abandonar o barco e, muito menos o banco, rebati sem exaltar-me, ainda que infantilmente:

- É seu é? Por acaso tem seu nome escrito? Esse banco é público e eu não vou sair.

Percebendo minha teimosia, aquele senhor há instantes emburrado, estampou no rosto a desesperança marcante daquela mesma praça e disse, já virando as costas:

- Na verdade, tem.

Antes que ele se afastasse, afetado por aquela imagem, levantei-me e olhei para o banco. Tive que procurar um pouco, mas encontrei. Bem no meio do encosto, entre assinaturas com caneta bic e corretivo, estava talhado na madeira, bem fundo, um coração preenchido com dois nomes. Corri atrás daquele senhor, que já havia cruzado metade da praça, coloquei minha mão sobre aquele ombro curvado e disse:

- Seu Luis, me desculpe.







2011 - 7º lugar no XIII Concurso de Contos Alípio Mendes - Ateneu Angrense de Letras e Artes - Angra dos Reis - RJ;
Publicada na coletânea do concurso

12.12.09

Limites

Era um grande garoto. Pelo menos era isso que os pais, tios e avós diziam sempre. Na maioria das vezes, ainda completavam o elogio com um afago em notas contadas, não importando se ele estava certo ou errado.

Com o tempo, aqueles que o cercavam seguiram envelhecendo e crescendo. Mas ele, por alguma razão obscura da natureza humana, encolheu. Tornou-se um sujeito mesquinho, um homem pequeno.

11.12.09

Sucessão

Entristeceu-se profundamente com a notícia da morte do avô. Era a primeira vez que teria que lidar com a morte de alguém - que nem era tão próximo, mas que era muito querido. Já haviam falecido outros parentes mais distantes e amigos da família, mas, apesar da insistência dos telejornais, a mãe tentava mantê-lo afastado do tema delicado - ao menos até aquela cinzenta manhã de chuva fina.

Após vestir a melhor roupa de domingo e, por cima dela, o casaco vermelho de gorrinho, entrou no carro calado e seguiu cabisbaixo durante as duas horas de estrada. Por vontade própria não falaria uma palavra, mas respondia monossilabicamente as perguntas da mãe, que tentava consolá-lo.

Ao chegarem à capela da pequena cidade, muitos dos parentes já estavam por lá. Também já estavam presentes no velório muitos dos amigos do seu Alfredo: o pessoal da bocha, a turma dos bingos e dos jantares dançantes (as pessoas eram as mesmas, só trocavam os dias, com bingo na quinta e baile no sábado) e, por fim, os que jogavam truco e dominó na praça (essas turmas eram diferentes e, inclusive, como dizia o seu Alfredo, que costumava apaziguar os ânimos, disputavam as mesinhas a unhas e dentaduras).

Quando pararam o carro e o garoto desceu, os amigos do seu Alfredo, compadecidos com a presença da criança, viraram-se para ele com os olhares bondosos de quem cuida. Observando a cena, o garoto lembrou-se do ano anterior, quando havia morrido o cãozinho que ele tinha desde quando nem se lembrava. Recordou-se que, no dia seguinte ao do atropelamento, a mãe o levou à loja de animais. Naquele momento, percebendo-se em meio a dezenas de opções, respirou fundo e sorriu, reconfortado.

10.12.09

À parte

Voltando para casa, invariavelmente passava diante do mercado. Pensou em entrar para comprar um bom vinho para acompanhar o jantar, mas quando chegou na frente, desistiu. Não passou reto porque a multidão que começava a aglomerar-se obrigou-o a desviar, mas, avesso a confusões, passou direto.

Enquanto ele passava, observou de relance que os seguranças estavam cercando uma senhora que parecia estar tentando atingir-lhes com uma sacola de tecido cheia de compras, também ouviu as pessoas comentando que ela já havia atirado outras mercadorias contra os funcionários do mercado. Permaneceu indiferente à cena e aos comentários, era também avesso às fofocas e burburinhos.

Continuou andando para casa, mas percebeu que enquanto ele andava, a notícia corria. Mal havia andado meia quadra e já via o assunto chegando na esquina, mais ou menos na mesma altura do congestionamento causado pelos motoristas que passavam devagar, tentando espiar alguma cena da confusão por entre os passantes, que no momento estavam parados, mas logo passariam. Sentiu-se incomodado ao ver que todos pelo caminho comentavam e aumentavam a situação vexatória dos envolvidos, mas o máximo que podia fazer era manter-se indiferente e não aumentar a onda - que a esse momento já estava enorme. Na esquina já comentavam que alguém estava atirando pedras e pedaços de pau para todo lado, que havia feridos.

Ao entrar no saguão do prédio, acreditou ter despistado a notícia que o cercava desde o mercado. Mas foi então que o porteiro comentou sobre a atuação violenta da polícia, há pouco tempo, em uma situação com reféns no mercado. Olhou para o porteiro e percebeu que ele falava com um morador que estava sempre por ali, sentado na poltrona - que talvez fosse até dele e não do condomínio, porque nunca havia visto nenhum outro morador usando-a. Sentiu-se aliviado porque podia poupar-se de fazer qualquer comentário em relação ao caso, até porque, caso comentasse, reduziria aos fatos o acontecimento que havia provocado tantas reações e, de fato ou ficção, agitado um bom tanto a vida um outro tanto monótona dos que deixam para viver no final de semana.

Quando entrou no apartamento, finalmente livre, sentiu-se superior aos que sucumbiram ao burburinho, às fofocas e conduziram uma simples confusão de saída de mercado a um conflito armado.

Começou a preparar o jantar e a repensar os acontecimentos do dia. Após alguns momentos de reflexão, sentiu-se angustiado porque, de fato, o que acontecera de mais interessante no dia foi o rebuliço na porta do mercado, que podia ter se tornado parte do seu dia se acaso não tivesse se esforçado tanto para ignorá-lo.

Um pouco depois que ele terminou a janta, especialmente preparada para a esposa, ela chegou. Cumprimentaram-se com um beijo - sem abraço por conta das mãos engorduradas - e, então, ele perguntou:

- Demorou um pouco mais hoje, muito trânsito?

- Essa rua ali da frente estava um pouco parada. Parece que houve alguma confusão no mercado. Você ficou sabendo algo?

Diante da pergunta a ele direcionada, o estímulo que lhe faltava, não conseguiu conter-se:

- Parece que alguém tomou um tiro no mercado.

9.12.09

Livre

Praticamente nasceu viajando. Ao longo da vida, rodou o mundo todo, da África do Sul para o Brasil, de lá para a China, para a Rússia, França, Inglaterra, Japão, Estados Unidos e diversos outros cantos.

Antes de dormir, agradecia por ter nascido mercadoria - e não gente.

8.12.09

Campo de batalha

O toque da alvorada soou, como soava todo dia - às vezes adiantado, mas nunca atrasado - indiferente ao resto do mundo. Ele despertou imediatamente e começou a preparar-se para mais um dia de duros embates. Batalhou de sol a sol e, quando este escondeu-se atrás das montanhas, dificultando a visão, ele recolheu-se também ao barracão de pau a pique, chão de terra batida, construído bem no meio da clareira, com material catado ali pelas cercanias.

No dia seguinte, novamente, antes das cinco horas, o galo canta.

6.12.09

Miserável

- Mais um!

- Desculpe-me pela indiscrição, mas o senhor já não tomou muitos?

- Mais um, porra! Não estou perguntando merda nenhuma, eu quero mais um! Eu pago a merda do seu salário, quero tomar mais um e você tem que me obedecer!

Abaixando a cabeça, o garçom atendeu-lhe prontamente. Era mais um sorriso que ele mandava goela abaixo, embebedando-se do pouco poder que tinha.

5.12.09

Visita

Ansioso pelo encontro marcado, limpou a casa toda. Há anos o chão, finalmente descoberto da camada de poeira, não brilhava tanto - com exceção do chão da cozinha, que agora estava opaco, livre do óleo de fritura dos lanches rápidos. Alguns cantos que fugiam à vista ainda deixavam a desejar, mas seria pedir demais àquelas juntas desgastadas.

Após conferir cada detalhe dos preparativos para o jantar, pegou o porta-retratos na segunda prateleira da estante velha, o beijou, pediu desculpas e o colocou na gaveta. Poupou ambos do sofrimento.

4.12.09

Cavando

Desconfiada, começou a questionar, investigar e acusar.

Sentindo-se enganada e muito irritada, cavava cada vez mais. Mas quanto mais fundo chegava, maior era a ausência de respostas, de pistas ou de provas.

Com o tempo, de mãos vazias, já estava quase desistindo da função quando percebeu que um pouco de terra lhe caiu na cabeça. Após olhar para cima, protegendo a vista mal acostumada do único feixe de luz que chegava àquele buraco, desabou em lágrimas. Percebeu-se cavando a própria cova. Viu que era ele, esgotado, que tentava enterrá-la no passado.

3.12.09

Conflito de gerações

De olhos fechados, deixou-se levar pelo som de Sgt. Pepper´s

Tal qual Alice, desnorteada, demorou para voltar a si, retomar as trilhas ruidosas da rotina

2.12.09

Bloqueio

informação
pra quem tem acesso

opinião
pra quem tem saída

liberdade de expressão
pra quem tem créditos

1.12.09

Geração espontânea

Ao cair das primeiras gotas, das chuvas ou garoas, germinam, instantâneas, sementinhas de congestionamento

31.8.09

Medíocre mediana

Infelizmente, para o desgosto das linhas de frente, depois de tantos anos, de tantas batalhas pela igualdade, resolveram nivelar por baixo

30.8.09

Infectada

Estavam ali as duas vizinhas de porta do condomínio, bebericando um café quente e colocando o papo em dia, cada qual em seu batente, quando a garota entrou correndo pelo corredor, interrompendo a conversa, e, arfando, eufórica, perguntou:

- Mamãe... - respirou fundo e continuou sem mais pausas - A Larissa pode vir aqui brincar comigo de casinha hoje depois que eu voltar do colégio?

Sem conseguir disfarçar a cara de nojo, com olhos meio fechados e bico cerrado, a mãe concordou com a cabeça, enquanto dava licença para ela entrar, e depois disse:

- Tudo bem, filhinha! - Mas complementou, em um tom mais elevado e áspero - Mas nada de ficar fazendo barulho até muito tarde, você sabe que seu pai chega do trabalho muito cansado.

A vizinha, com a curiosidade dos que pouco se ocupam das coisas próprias, questionou-a sobre a reação, ao que ela prontamente respondeu:

- Essa Larissa é nossa ex-vizinha. A menina é branca de dar dó e tem a pele cheia de manchinhas, toda "sarnentinha", parece doente, sabe como é? Dá uma agonia só de ver, ainda mais nesse sol, coitada.

Ainda cruzando a sala, a garota ouviu o que a mãe disse e correu para o quarto. Ela sabia que quando a mãe tentava sussurrar, mesmo que em vão, era porque não devia ouvir. Sabia também que, logo após terminar a frase, a mãe olharia para trás para conferir se havia, por acaso, escutado algo que não devia.

Após o almoço e durante toda tarde, pensou no que a mãe havia dito, mas, ainda que tivesse algum receio, não ousaria desmarcar o compromisso com a melhor amiga. Além disso, se tanto já haviam brincado juntas, não devia ser algo que passasse de uma pessoa para outra.

Ao cair da tarde, quando Larissa chegou, apenas por precaução, trocou o beijinho por um abraço rápido. Pouco depois, quando abriram o baú dos brinquedos, começou a separar as bonecas, que sempre haviam sido das duas. Por fim, quando a "sarnentinha" abraçou a boneca preferida, esboçou um sorriso, na mesma cara de nojo da mãe, e disse:

- Pode ficar com essa...

29.8.09

Ordens

Não podia recusar a gentileza oferecida pela nora, mas, ainda que tenha tentado se segurar, não conseguiu deixar de comentar:

- Eu prefiro lavar primeiro os talheres.

- Por que?

- Só acho que é melhor se fizer assim.

A garota, indiferente, continuo lavando os pratos, depois os copos e, por fim, os talheres. Quando buscou o pano de prato para secar e guardar a louça, a sogra, que observava da porta da cozinha, interveio, sorrindo:

- Não precisa, pode deixar no escorredor que depois eu guardo, afinal, você já fez o bastante.

Algum tempo depois, quando o filho e a nora foram embora, desfez o sorriso, foi para a cozinha e colocou toda a louça na pia. Enquanto esfregava novamente os talheres, dizia para si mesma, indignada:

- Essas mulheres de hoje...

28.8.09

Privativo

Os amigos, esperando no carro, já haviam cronometrado, eram exatos trinta minutos para que ele pudesse conferir todas as portas e janelas da casa antes de sair.

Nunca soube explicar muito bem desde quando sentia-se compelido a realizar a vistoria toda vez que fosse sair de casa, mas afirmava convicto que se não a realizasse, não ficaria bem. Ele avisava a todos sobre sua condição, inclusive porque certa vez, quando tentaram arrastá-lo de casa para um bar, impedindo-o de verificar todas as fechaduras, trincos e trancas, ele teve um surto paranóico e, desde então, com a revisão de garantia, os quinze minutos tornaram-se trinta.

27.8.09

Dissecação

Nunca esqueceu-se daquela cena. A família havia passado o final de semana viajando e ninguém lembrou-se de deixar água suficiente no tanque da Dona, a tartaruguinha de estimação. Quase quinze anos depois, ainda lembrava perfeitamente de quando apoiou-se na beirada do tanque e viu a pobre coitada, sequinha, sendo devorada pelas formigas.

Desde aquele dia, nunca mais deixou de tomar uma ducha e dois copos de água antes de dormir.

26.8.09

Cambaleante

Pouco antes do amanhecer, o garoto mimado implorava pela volta e o homem livre comemorava a coleira solta

Enquanto ele, alheio ao pêndulo dos próprios pensamentos, esforçava-se para acertar a fechadura daquela casa tão vazia

25.8.09

Singular

Entre almofadas com ombros solidários e travesseiros com braços carinhosos, consolos do mundo moderno, zapeava fotos alheias e lembrava-se de amores não vividos

Antes de dormir, chorava pelas mágoas que nunca pode guardar

23.8.09

Antidesportivo

Bem na hora do close, no momento de maior emoção, arrancou a camisa e atirou longe o patrocinador

Foi punido com cartão

22.8.09

Broto

Quando ela insistiu, afiando-se nos esforços para convencê-lo ao desencanto, ele disse pausadamente:

- Todas as rosas têm espinhos, mas nem todas as espinheiras têm rosas.

Ela desabrochou.

21.8.09

Intuição feminina

A todo momento, cutucando a unha e mordendo-se por dentro, tinha a impressão de que algo errado estava prestes a acontecer.

Após muitos erros, quando ele não aguentou mais a desconfiança e fugiu, ela esvaziou-se de dúvidas e, por fim, encheu a boca de razão para falar que já sabia.

20.8.09

Espinho

Seis e meia, sem outra solução em mente, virava um copo da pinga mais amarga.

Tentava, em vão, fazer descer o dia.

19.8.09

Corda bamba

Enquantos as gotas escorriam, movia-se freneticamente, desesperada

Seu par acabara de ir ao chão, amarrotado

O pregador não resistiu

18.8.09

Em pé

Tirou a bota para dar um pouco de ar ao pé. Uma crosta endurecida de sangue cobria os três dedos menores. No dedão e no outro, o sangue ainda corria, agora solto.

Já havia quase duas semanas que recebera o par de botas em uma igreja e até agora arrependia-se por ter sorrido e falado que cabia direitinho. Na hora, apavorou-se com a idéia de que não lhe sobraria nenhum calçado além das botas e, sem outra opção, teria que voltar a caminhar no asfalto quente - às vezes, tinha a impressão de que o calor derreteria até os pneus dos carros, não fossem estes tão rápidos.

Sem tempo para perder indo ao hospital para ser ignorado, voltou a olhar para o pé, limpou a ferida com o único pedaço da meia que ainda não estava empapado de sangue e arriscou encostá-lo no chão. Ao sentir o calor do asfalto, desolado, puxou o pé de volta para cima, calçou a bota com muito esforço e continuou andando, o dia seria longo.

17.8.09

Baleado

Quando chegava em casa cambaleando, sentia-se como um voluntário do atirador de facas

Enquanto a cama girava, ele ficava inerte, incapaz de desviar das acusações

16.8.09

Surpresa

Ele nunca abaixava a guarda, mas, por ela, ficava de coração mole (com exceção das noites de bebedeira, de quinta a segunda-feira). Naquela noite de quarta, chegou cedo, como esperado, e deparou-se com ela esperando na sala, de camisola, com uma venda nas mãos.

Vendado, esperou ansioso, perguntando-se o que lhe aguardava. Bateu os pés, coçou a nuca e, após ouvir os passos dela aproximando-se de volta, ficou paralisado, em pé, no meio da sala.

Após tantos anos de submissão, surpreendeu-se, nunca pensou que um dia ela teria coragem de vingar-se.

15.8.09

Inigualável

Ao ser questionado sobre sua arte desarmônica, sem critério ou direção, explicava com ar de superioridade:

- Tenho um estilo diferenciado, único.

14.8.09

Desnascimento

Do século XVI ao século XIX, a humanidade buscou desenvolver aparelhos e máquinas que lhe poupassem o esforço físico, permitindo assim o aproveitamento da capacidade cerebral.

A partir do século XX, a tendência inverteu-se. A cada semana aparece, nas academias, um aparelho mais exigente e, nos escritórios, uma máquina mais eficiente.

12.8.09

Mate

Desde o casamento, acostumou-se a ser tratada como uma rainha, ia para onde quisesse, quando quisesse. Quase todos os desejos lhe eram atendidos, com exceção dos que revelava apenas entre quatro paredes. No entanto, devido às regalias, as dificuldades do marido pouco lhe incomodavam até aquela tarde chuvosa.

Ao arrumar as gavetas, para evitar que os velhos pijamas embolorassem, encontrou as cartas e bilhetes. Descobriu naquele momento que ele só se interessava pelas outras rainhas.

Tomada por ira, desgovernada, deixou-se levar pelo primeiro peão que cruzou pela casa.

11.8.09

Onipresente

Ele está presente nos destinos de todos nós, ainda que alguns não lhe dêem a mínima atenção. Enquanto olham para o alto, alguns rezam para que lhes abra os caminhos enquanto outros xingam, culpando-lhe por fechá-los.

Em cada terra chamam-lhe de uma maneira, mas lá na minha, é sinaleiro.

10.8.09

Admirador secreto

Pensou em arriscar-se contando
mas ficou em dúvida

se mais vale um não na cara
ou um talvez voando

9.8.09

Ambicioso

Ao ser questionado sobre o que queria ser quando crescesse, não tinha dúvidas, já tinha a resposta na ponta da língua, queria ser sorveteiro. Os parentes e vizinhos riam, evocavam a inocência infantil e o desprendimento ao dinheiro.

Indiferente aos comentários e apertões na bochecha, o garoto, que sempre pagava o picolé com uma nota de dez, contemplava o enorme bolo de dinheiros que o sorveteiro tirava do bolso momentos antes de lamber o indicador e separar-lhe o troco. Deleitava-se, não via a hora de poder lamber o indicador e embaralhar sua própria fortuna de trocados.

8.8.09

Percepção precoce

Naquela idade - que ele mesmo pronunciava orgulhoso, enquanto exibia três dedos da mão direita, depois virava a mão para si mesmo e, por fim, usando a mão esquerda, corrigia puxando mais um dedo para cima - aprendia tudo observando.

Um dia qualquer, acordou cedo e rumou para a cozinha, ávido por um bom café da manhã. Por lá, não encontrou os pais, entre gravatas e sapatos de salto, notícias e sobressaltos, com o café pronto. Logo, concluiu que havia chegado o final de semana.

Sem desistir do café da manhã, arrastou a cadeira até a frente do armário, subiu na cadeira, abriu a prateleira, alcançou a lata de Nescau, colocou o Nescau na prateleira mais baixa, desceu da cadeira e arrastou-a de volta para baixo da mesa. Depois disso, abriu a geladeira, tirou os potes de sorvete com sobras do jantar, que já o haviam enganado uma vez, colocou-os no chão, retirou o leite, colocou os potes de volta ao lugar. Fazendo um esforço enorme, apoiando as mãos na beirada da mesa, fez um esticou o corpo todo para fechar a geladeira com o pé - igualzinho o pai fazia. Tendo conseguido o leite e o Nescau, faltava apenas uma colher para misturá-los. Sem pensar duas vezes, abriu a gaveta dos talheres e, mesmo sem conseguir enxergá-los, por causa da altura, pegou uma das colheres, que ficavam à esquerda, e fechou a gaveta - dessa vez não conseguiu imitar o pai, que a fechava com o quadril.

Após preparar o leite com Nescau, derrubando apenas um tanto da mistura quando começou a mexer com a colher, foi para a sala e ligou a televisão, estava na hora dos desenhos. Sentou-se ao sofá e esticou novamente o corpo inteiro para alcançar a mesinha com os pés. Tentou parecer relaxado como o pai naquela posição, mas não conseguiu. Em alguns minutos já estava sentado sobre as pernas cruzadas.

Antes dos pais acordarem, já havia tomado banho e, quando eles finalmente acordaram e começaram a se arrumar, ele já estava pronto para sair, com a camiseta nova do Batman. Afinal, era sábado, dia de almoçar fora.

Chegando ao restaurante de sempre, conhecido pelas comidas típicas, o preferido pelos turistas naquela região, o pai solicitou a mesma mesa para três. Ao sentarem-se, o garoto começou a falar enrolado, forçando a garganta, inventando uma sequência de palavras. Os pais, atônitos, olhavam para ele sem entender. Quando o pai perguntou o que ele estava fazendo, respondeu cochichando no ouvido:

- Eu andei reparando. O garçom é mais legal e a comida vem mais rápido para quem não sabe falar direito.

7.8.09

6.8.09

Dever

- E o pior é que ano que vem já tem tudo de novo.
- É.
- Daqui a pouco já começam a falar no jornal da tal "festa de democracia".
- Festa? Parece até quando o patrão faz festa de aniversário aqui na fábrica, bem na hora do expediente. Ninguém tem nada para comemorar, mas todo mundo é obrigado a participar.
- Também não aguento mais.

5.8.09

Brainstorm

As leis são um apanhado de boas idéias

Mas, no final, apenas duas ou três são colocadas em prática

4.8.09

Profissionais

Entre esquemas e comissões, não há mais espaço para político café com leite

3.8.09

Arisco

Sozinho, trancado e seguro, contava os dias e o dinheiro

Após tantas ilusões e trapaças, não podia contar com mais ninguém

2.8.09

Transtorno possessivo compulsivo

Dos despojados aos despossados, que não têm nada além de vontades, todos morrem de medo de perder

31.7.09

Migração

De mãos abanando, tentou voar para um lugar melhor e, após longa jornada, acabou abrigando-se à sombra dos arranha-céus.

Saudoso do sol, não via a hora de poder voltar ao ninho.

30.7.09

28.7.09

Consolo

Na sala de espera do consultório, entre plantas de plástico e revistas "Caras", esperando ser chamada pela dermatologista, encontrou algumas velhas amigas e, enfim, sentiu-se um pouco melhor.

Percebeu, com um leve sorriso no rosto, que não havia sido a única vítima do tempo.

27.7.09

É Barra

Assim como eu, todos os que moram aqui são muito felizes.

Quanto aos que só vêm para trabalhar e depois vão embora. Bom, esses não são problema nosso.

26.7.09

Prestígio pueril

Sentados no meio-fio, todos os garotos aguardavam o Seu Alberto voltar do centro carregando a promessa debaixo do braço. Se o Marquinhos passasse de ano, ganharia o videogame. Todos os meninos da rua ajudaram nos estudos e, agora, estavam aguardando a hora de poder testar o novo jogo.

Estavam todos esperançosos, exceto Diego, que assistia a cena pela janela de sua casa, ansioso, percebendo que perderia o controle.

25.7.09

Esplendor

A sala era divida em 4 blocos, que, por sua vez, eram divididos em 4 cubículos. Apenas a sala do chefe, separada da outra, tinha janelas - que de nada adiantavam, uma vez que não se abriam e que eram cobertas por uma película escura.

Os cúbiculos estavam ocupados, com exceção de um. Discutiu com o chefe e pediu demissão, não aguentava mais. Dizem que foi porque um dia teve que sair um pouco mais cedo, para levar o filho ao dentista, e, só então, depois de anos, reparou que o mundo não era cinza como na hora em que saia de casa ou na hora em que voltava. Com um sorriso reluzente, comentou com o filho: "o mundo é amarelo".

24.7.09

Na média II

Na faculdade, o ambiente acadêmico, conhecida por ter formado grandes líderes e pelo posicionamento de seus membros nas lutas históricas, engajou-se nas questões sociais que estavam em voga.

- Precisamos fazer algo...
- Algo grande!
- Isso! Diferente de tudo que já foi feito.
- Para marcar as pessoas.
- Exatamente.
- Já sei!
- O que?
- Vamos alugar uma chácara e fazer uma rave open bar, com um som irado!
- Não era nisso que eu estava pensando...
- Não?
- Não gosto muito de música eletrônica.
- Mas pode ter vários ambientes... E o importante é ser open bar!
- É, tendo bebida...

23.7.09

Na média I

Cresceu naquele bairro razoavelmente seguro, mas que, como todos os cantos da cidade, com exceção aos longínquos bairros-prisão de segurança máxima, havia tornado-se violento.

- Acredita que entraram na casa da Dona Adélia?
- Não creio...
- Sim, e ela estava lá na hora...
- Meu Deus! Ela está bem?
- Parece que ainda não se recuperou do susto.
- Alguém chamou a polícia?
- O pessoal ficou com medo de ligar. A própria Dona Adélia disse para não ligar porque o bandido podia voltar, mas depois ela viu que uns cheques e documentos haviam sumido e ligou para fazer um BO.
- E a polícia fez o que ?
- O de sempre. Chegaram quase uma hora depois, fizeram algumas perguntas, poucas anotações e foram embora sem deixar muita esperança de recuperar qualquer coisa.
- É um absurdo o que eles fazem. Alguém reclamou disso? Para o delegado, promotor, sei lá...
- Lógico que não! Imagine, mexer com a polícia... está doido?
- Alguém precisa fazer alguma coisa. Esse governo, não dá para aguentar mais.
- É, seria bom se alguém fizesse logo.

22.7.09

Matilha

Todas as férias, sem exceção, iam todos para a casa da avó. A família inteira reunia-se em retratos repletos de sorrisos.

Nos intervalos entre uma foto e outra, rosnavam e discutiam.

21.7.09

O curioso caso da Literatura

E aquela simpática senhora, que contava histórias repletas de detalhes e encantamentos, transformou-se na criança birrenta, que chora, como se sofresse, apenas por um pouco de atenção

20.7.09

A carniceira da Cinelândia

A salinha era pequena, com paredes amareladas pelo tempo e com cheiro forte de algum produto químico. Pela janela, ainda que escurecida, notava-se a cruz na ponta da catedral, a algumas quadras de distância.

Eu já estava deitado, com uma luz forte sobre o meu rosto, quando ouvi a batida seca daqueles saltos, aproximando-se por trás de mim. Ela chegou mostrando a que veio, sentou-se ao meu lado, aproximou ainda mais a luz do meu rosto e começou a utilizar uma das inúmeras ferramentas que estavam ao alcance dos meus olhos. No primeiro movimento, arrancou-me sangue e, então, dona da situação, começou a questionar-me sobre os motivos que me levaram a estar na cidade, há quanto tempo eu estava ali e quais eram os meus objetivos. Mesmo que eu quisesse, não podia falar, seria pior.

Fechei os olhos, tentando suportar a dor calado, enquanto ela resolveu utilizar todo seu repertório. Sentia-me dilacerado, com cheiro e gosto de sangue, mas permanecia calado e de olhos fechados.

Ela continuou aplicando seus métodos até que, para meu alívio, uma campainha soou. Ela deteve-se, olhou para a assistente e fez um sinal com os olhos para que ela fosse verificar a situação. A assistente saiu, vagarosamente, e dirigiu-se ao corredor. Ela voltou-se novamente para a mesa de instrumentos, mas, após alguns instantes, a assistente voltou e sussurrou algo em seu ouvido. Neste instante, ela deteve-se novamente, olhou-me nos olhos e disse:

- Eu já volto!

Respirei fundo, cuspi sangue e tentei relaxar os músculos - a este ponto, estavam totalmente tensos. A assistente observava-me, parecia sentir um pouco de pena. A chefe voltou, mandou que ela se retirasse da sala e sentou-se novamente ao meu lado.

Quando achei que ela escolheria algum novo equipamento para infligir-me alguma dor, surpreendeu-me com um pedaço de papel e limpou-me o rosto. Após recomendar que eu me cuidasse para não precisar vê-la de novo em breve, liberou-me. Atravessei o corredor ainda atordoado. Ao chegar na recepção, dei de cara com o próximo paciente. Eu queria avisá-lo, mas não consegui, minha boca toda doía.

19.7.09

Rotação

Entediada, preparava uma nova ida a cada retorno. Nos intervalos, mostrava aos poucos amigos tudo que havia comprado daqueles povos exóticos, bárbaros. Fazia questão de mostrar também os álbums, com as mesmas fotos, mesmas caras e bocas, mudando apenas um pouco, do pouco que se via do fundo.

Dava voltas pelo mundo, girando em torno de si mesma.

18.7.09

Hamsters

Presos ao propósito de agradar aos outros, correm em círculos, desesperados, sem sair do lugar

Dizem que é para manter a forma

17.7.09

2019

Em meio ao cenário desolador, sabendo das graves consequências, alguns ainda arriscam-se a escondê-los no porão para evitar que sejam executados.

Enquanto isso, os governantes frisam a importância de entregá-los às autoridades competentes e a mídia relata, entre telejornais e interrupções urgentes, a incessante dispersão, as incontáveis vítimas e as prováveis consequências da gripe canina.

16.7.09

Teatro

Com a garganta já seca
lembrou-se de fechar a boca

Aproveitando o momento
respirou fundo

mergulhou de volta

14.7.09

Passageiro

Parada em minha frente, enquanto abaixava o rosto, ela começou a chorar. Em meio a lágrimas e engasgues, sussurou:

- Eu não quero que termine assim...

Eu fiquei estático, em silêncio.

Após um breve silêncio, ficando cada vez mais agitada, começou a passar a mão pelos cabelos, em claro sinal de desespero. Com as lágrimas escorrendo pelas bochechas, saltando pelo queixo e pousando sobre as pernas, precisou reunir forças para falar, com a voz já rouca, entrecortada por soluços:

- Eu ainda te amo!

Ainda que estivesse comovido, permaneci parado e calado. Eu não podia fazer nada.

Tentando apagar aquele sentimento, esfregando o rosto com a mão e, em seguida, com o braço, acabou manchando a blusa branca com a maquiagem, que a esta altura lhe cobria de maneira disforme quase metade do rosto, dando-lhe ares de uma triste figura pintada por Pablo Picasso. Neste momento, emudeceu, como se aceitasse a própria sorte e, por fim, disse com mais calma:

- Então, acho que é adeus...

Quando ela levantou a cabeça, eu desviei o olhar. De canto de olho, percebi que ela apoiou a cabeça em uma das mãos e continuou a chorar. Enquanto eu, apenas mais um passageiro, não podia fazer nada.

13.7.09

Êxodo

Recém-formados, com curso superior, submetem-se a salários subhumanos.

Logo, incapazes de sustentar-se com o próprio soldo, os revoltosos entoam o grito de liberdade:

- Independência ou norte!

12.7.09

De cristal

Era, sem dúvida, uma boa pessoa. Tratava todos muito bem, sem nenhuma distinção, cuidava de animais abandonados, doava sangue e trabalhava duro para manter sua humilde casa. Em seu pequeno jardim, cultivava hortelã e manjericão. No modesto armário de louças, colecionava copos de requeijão.

Aquela visita à avó, quando reparou nas belas taças, foi um dos raros momentos em que desejou o mal a alguém.

11.7.09

Doce vingança

Conspiram, todos juntos, por aquilo que lhes foi negado

Na primeira chance que lhes é dada, agem com rapidez e precisão

Ao serem confrontados, os olhos, dando voltas, enrolam-se, a boca, cheia de culpa, se fecha, e os dedos, ainda repletos de açúcar, refugiam-se nos bolsos

10.7.09

Sujeito

Tosse, tosse e se retorce. Na sala de espera do hospital, sozinho, chora. Angustiado, levanta-se e sai apressado, buscando tomar um pouco de ar puro.

Para acalmar-se, acende mais um cigarro, torcendo para que seja o último.

9.7.09

Nação

Naquela região,
sobre os castelos e casebres,
tremula a mesma bandeira

ecoa o mesmo grito de gol

8.7.09

Tendências

Seguem as tendências do mundo moderno, coisas simples e básicas, mínimas.

No chão, terra batida. Na dispensa, apenas o básico. No começo do mês, o mínimo.

7.7.09

Circo econômico

Enquanto bancos e outros especuladores chacoalham para cima e para baixo

Trabalhadores e outros malabaristas, sem rede de segurança, tentam equilibrar-se

6.7.09

Portabilidade

Insatisfeito com os serviços prestados, muito aquém do quanto ele desembolsava todo dia, todo mês e todo ano, solicitou seu passaporte e arrumou as malas.

4.7.09

O homem na rua

Eu salvava vidas todos os dias, mas não era de aço e, no tempo livre, gostava de ir ao boteco do chinês. Naquela tarde caminhei até o bar, cumprimentei o chinês, que dizia ser coreano, mas que não se importava com o apelido, e sentei-me em uma das mesas internas. Já havia reparado que as nuvens anunciavam chuva por vir e, por não pretender ir embora muito cedo, achei melhor prevenir-me da inevitável mudança de mesa. Estava na cidade há apenas três semanas, mas se havia uma coisa na qual havia reparado era nas mudanças graduais e anunciadas do clima. Além do clima, prestava muita atenção nas fantásticas histórias do chinês, coreano, sobre suas inventivas façanhas na guerrilha norte-coreana, um dos aperitivos que tornavam o boteco ainda melhor.
Ao final da tarde, como de costume, as ruas rapidamente encheram-se e esvaziaram-se enquanto os escritórios esvaziaram-se e os lares e bares encheram-se. O boteco do chinês, não sendo exceção, ficou sem uma mesa livre. Eram poucas as mesas, três internas e três externas. Na mesa mais próxima da minha havia um casal de jovens, padrão universitário, cerveja ruim na mesa, óculos na cara e all star no pé. Na mesa mais próxima ao balcão estavam dois sujeitos com uniformes de uma fábrica da região. De onde eu estava não conseguia enxergar nenhuma das mesas de fora porque havia muita gente em pé, bem na minha frente, em volta da juke box. Nunca achei que ressuscitariam essas máquinas, mas, agora que ressuscitaram, as pessoas debatem para saber quem vai colocar a próxima música, enquanto não se decidem, resta-me o silêncio.
O silêncio da indecisão durou pouco, seguido por... um... dois... Todos atiraram-se ao chão, desesperados, uns gritaram, outros se jogaram para dentro do bar e eu fiquei estático, tenso, colado à parede... três ... quatro .... cinco. Cinco tiros, seguidos novamente por um breve silêncio, dessa vez, rompido pelos gritos de um homem.
Eu, chocado, permaneci estático. O homem na rua gritava. Os funcionários da fábrica, que gritaram para as pessoas atirarem-se ao chão, acostumados pela rotina, levantavam-se calmamente. O homem na rua praguejava. A garota que estava na mesa de dentro gritava e chorava, desesperada, dando bronca no namorado que atirou-se ao chão sem pensar nela. O homem na rua chorava. O chinês, coreano, saiu de trás do balcão e, enquanto caminhava lentamente até a porta, disse para que todos permanecessem abaixados até que ele soubesse o que estava acontecendo. O homem na rua agonizava. Eu, ainda estático, olhava para o coreano, chinês, esperando uma reação, um sinal, talvez em código, de preferência que fosse um aviso de que o inimigo havia recuado. O homem na rua implorava.
Após espiar brevemente a rua deserta, exceto pelo homem caído, quase em frente ao mercado, o coreano, chinês, virou-se para mim e disse o que eu já sabia, mas ainda não havia assimilado, que havia um ferido. De prontidão, levantei-me. O homem na rua rezava. Hesitei por um momento. Visualizei-me em um campo de batalha, arrastando-me pelo chão até um soldado ferido, aplicando-lhe uma injeção de algum poderoso anestésico, mentindo que foi só um arranhão, recebendo de suas mãos a carta que eu deveria prometer que entregaria à querida Mary Jane, que o esperava no alto do morro. O homem na rua grunhia.
Caminhei até a porta e pude ver aquele corpo que agora pouco se movimentava, exaurindo-se de forças. Quando pensei em correr até ele, o coreano colocou a mão em meu peito e não me deixou prosseguir. Ele reconheceu o homem na rua, que agora apenas gemia, e explicou-me que, por ali, quem ajudava bandido era tratado como tal.
A chuva anunciada começou a cair, lavando o sangue e engasgando as últimas palavras balbuciadas pelo homem na rua.

3.7.09

Desnivelado

No topo da pirâmidade, carregada de títulos e regalias, resplandece a esmagadora minoria

1.7.09

Desgosto

Aproximou-se daquela precária prateleira de madeira, apoiada na bicicleta, para facilitar a fuga caso o rapa resolvesse dar as caras. Olhou fixamente para os caramelos. Não era muito de comer doce, nem podia se dar muito ao luxo, mas não resistia àqueles rechonchudos caramelos de Petrópolis. Permaneceu por alguns instantes observando os caramelos, ficou com água na boca e, então, ao reparar na desatenção do vendedor, que tentava trocar uma nota de 10 com o pipoqueiro, tentou pegar um com sabor de chocolate, os azuis, seus preferidos.

Por um momento, encantado pelas guloseimas, o garoto esqueceu-se do perigo. Pagou caro por esse deslize, enquanto olhava para o caramelo em sua mão, cada vez mais próximo do seu bolso, dos fundos do teatro municipal e, por fim, de sua boca, o vendedor, calejado da vida na rua, em um movimento do pé atirou o chinelo para cima, agarrou-o, ainda no ar, e completou o movimento desferindo uma sonora chinelada no rosto do pequeno ladrão de caramelos.

Toda a praça ouviu o estalo, os pombos, assustados pelo barulho, voaram para longe enquanto o garoto permaneceu estático. No rosto, exibia uma marca vermelha evidenciando todas as ranhuras da sola do chinelo. Um fino fio vermelho escorreu-lhe pelo canto da boca.

Cuspiu um pouco de sangue enquanto ouvia um sermão sobre aprender a nunca mais fazer aquilo. Após toda a bronca, ouvia apenas um zumbido, consequência da chinelada. Saiu dali o quanto antes, para que não o vissem chorando. Apertando o passo, dizia a si mesmo que não chorava de dor, mas sim de raiva. Ao chegar ao fundo do teatro municipal, seu refúgio, chorava, sangrava e tremia. Sentado no canteiro, esmurrando o chão, prometeu que um dia, quando crescesse, assim que tivesse forças, iria vingar-se daquela ofensa e de todas as outras, mataria ele friamente. E, se a mãe se intrometesse, o que nunca fazia, ela também, a contragosto.

28.6.09

Curiosa

Durante todo o outono

folheava displicente

todas as ruas do bairro







2009 - 19º Concurso de Poesias Helena Kolody - Secretaria de Estado da Cultura - Curitiba - PR;
2010 - 1º Concurso TOC140 de Poesia no Twitter - VI Festa Literária Internacional de Pernambuco - Olinda - PE;
Publicada nas coletâneas de ambos os concursos

27.6.09

Desgovernado

Desiludidos com a política, deixam-a de lado e procuram as mudanças por outros meios

Diligentes, apesar de não ter nenhum controle sobre o leme, remam sem parar

26.6.09

Piratas

Sem o menor constrangimento, como é de praxe, as grandes companhias oferecem a preço de ouro seus produtos exclusivos

Alguns ditos oportunistas, após muito navegar, oferecem produtos idênticos a preços mais acessíveis, inclusivos

25.6.09

Cidade da insônia

A cidade adentra a madrugada entre surtos e devaneios, rodas de samba e tiroteios

Não é à toa que sempre acorda um pouco atrasada e passa o dia apressada, inquieta

24.6.09

Dissimulado

Em bares obscuros, nos porões da boêmia, seus personagens seguem os passos dos famosos alter egos dos legítimos marginais de gerações passadas.

Enquanto isso, avesso aos bares e a essa gente estranha da rua, na frente do computador, ele folheia algum outro célebre boêmio, em busca do que chama de inspiração.

23.6.09

Subrrealismo

Escondido atrás de uma parede de tijolos e sem reboco, estava com a respiração fraca, olhos bem abertos e falava sobre o conflito que estava ocorrendo entre policiais e traficantes naquele exato momento. Ao fundo da imagem via-se alguns policiais posicionados em uma ladeira, muito bem armados, entre dois corredores de casebres.

Enquanto ele falava sobre os constantes conflitos, sobre as ações criminosas da polícia, das milícias e dos traficantes, dois moradores do bairro sairam de suas casas e passaram ao lado dele, caminhando normalmente.

Ao vivo, sem conseguir disfaçar a decepção, o repórter finalizou a matéria dizendo:

- Dois moradores passam por aqui como se nada estivesse acontecendo.

22.6.09

Torcedora

Torcia o quanto podia. Ao perceber que não extraia mais nada, pendurava as roupas no varal.

Nunca entendeu a fixação do marido, fanático, torcendo por um time que não ganhava um título há décadas.

21.6.09

20.6.09

Vale tudo

Com o rosto desfigurado, enxergando muito pouco, teve dificuldade para encontrar o técnico em meio à platéia. Ao encontrar, apontou para ele, dedicando a vitória.

No outro córner, o derrotado estava inconsolável. Após meses de treino, não conseguia aceitar a decisão dos juízes.

Entre orelhas deformadas, bocas desdentadas e muito sangue, mal dava para notar a diferença entre as expressões dos dois.


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Com o rosto desfigurado, inchado, teve dificuldade para encontrar a esposa em meio ao público e dedicar-lhe a vitória.

No outro canto, o derrotado estava inconsolável.

Entre orelhas deformadas, bocas desdentadas e muito sangue, mal dava para notar a diferença entre os dois.

19.6.09

Figurante

Indignou-se com aquela cena deplorável

Ainda assim, passou ao fundo, longe, esforçando-se para não ser notado

18.6.09

Mitos do Rio Antigo

Caminhando pelos bairros boêmios, entre bares, botecos e salões de sinuca, acabava sempre envolvido pelos cânticos daqueles seres mitológicos. Eram todos muito parecidos, tinham em comum as barbas por fazer, camisa com os dois ou três botões de cima abertos, algum colar ou pulseira de algum santo ou padroeira, pernas de bode e chifres escondidos pelos cabelos desgrenhados ou pelo chapéu panamá.

Ao invés das flautas de outrora, para induzir os ouvintes a um estado de transe, utilizavam cavacos, surdos, pandeiros e violões de sete cordas. Apesar de terem adaptado as velhas gingas aos novos tempos, continuavam fiéis a Dionísio, aos prazeres da carne e, sem dúvida alguma, ao álcool.

17.6.09

Circulando

Nômades, caminham pela região em busca do melhor local para assentar o acampamento. Ao encontrarem, geralmente sob proteção do vento e da chuva, desfazem as trouxas com seus poucos pertences, organizam a busca por comida e, caso o frio seja uma ameaça, providenciam uma pequena fogueira.

Normalmente permanecem no local por alguns dias e depois partem para outra região. Mas, em alguns casos adiantam a mudança, acuados por um soldado que lhes ordena:

- Circulando!

15.6.09

Antropocentrismo

Aproveitou que estava em um dos pontos mais belos da cidade para posicionar a câmera e bater uma foto

Ao ver que havia captado um bom ângulo de seu rosto, sorriu:

- Fiquei ótima!

14.6.09

Reação em cadeira

Protestava por todas as causas pelas quais se podia protestar: democracias, diplomas e desvios de dinheiro público

Muitos outros, igualmente engajados, seguiam o exemplo, com apenas um clique

13.6.09

Enchente

Quando a tempestade transforma a rua em riacho

Quem não pode afunda,
quem pode navega

e o poder público, nada

12.6.09

Dilúvio

Quando os ventos da crise sopraram forte e a linha de pobreza começou a subir, meio mundo foi inundado.

A maior parte dos que viviam na parte de baixo do mapa afogou-se.

11.6.09

Jogo de sombras

Lutando por direitos básicos, enfrenta-se inimigos invisíveis

No entanto, quando acuados por holofotes, todos defendem as boas causas

10.6.09

Porta da insegurança

Daquela porta em diante, os fracos tornavam-se fortes, os oprimidos viravam opressores e os sós ficavam bem acompanhados

Naquele bar, chamado de café executivo, os clientes, operários maltratados, eram disputados a tapas

9.6.09

Entre nós

Os que se dizem sóbrios, presos a seus medos, afastam-se dos outros

Enquanto os loucos, desatados, falam sozinhos

8.6.09

Biblioteca

Naquele prédio imponente

Repleto de palavras ilustres

Só restava espaço para o silêncio

7.6.09

Estrada nublada

Cada mão estendida
puxava-o para a desgraça

Nestas curvas traiçoeiras
cada luz é uma ameaça

5.6.09

Troca de favores

Quando o candidato aproximou-se, com aquele sorriso ilusório e aquele papo vazio, contraí o maxilar pressionando dentes contra dentes, contendo-me.

Mas o tapinha nas costas foi a gota d´água. Mandei-lhe tomar no meio do cu, com todas as letras, gestos e até mesmo com algumas gotículas de baba que escaparam-me da boca e acabaram caindo sobre as bochechas daquele fingido.

A política de elogios baratos, retribuo com ofensas gratuitas.

4.6.09

Regime

Naquele restaurante ali do centro servem comida a quilo do meio dia até as duas. Mas, pra lá das duas sobra só aquilo. Eu, com horário de almoço cada vez mais curto, obrigado a engolir qualquer coisa por ali, em qualquer lugar, não reclamo. Na verdade, eu até prefiro ir depois das duas porque fica mais barato. Daí o almoço cabe no bolso.

3.6.09

Fiéis

Terminada a missa, viravam-se uns para os outros e diziam:

- Fique com Deus!

Já bastava uma hora do final de semana, ninguém queria levá-lo pra casa.

2.6.09

Sensatez

Os ministros do STF, após análise aprofundada do conteúdo dos meios de comunicação do país, decidiram por acabar com a exigência da graduação em jornalismo para exercer a profissão naqueles meios.

Resolveram, em raro momento de sensatez, que para trabalhar na grande imprensa deveria-se exigir, a partir daquele momento, a graduação em publicidade.

1.6.09

Dia internacional da pouca coisa

No dia 1º de julho de 2009, em meio aos poucos direitos que efetivamente temos, Marcia Villeda, do partido liberal hondurenho, comenta a suspensão dos direitos constitucionais, após o sequestro do presidente e a tomada das ruas pelo exército:

- É basicamente uma restrição parcial, que estará vigente junto com o toque de recolher.

31.5.09

Geografia social

No meio do caminho para casa, já respirando com dificuldade, o garoto virou-se para o pai e reclamou:

- Essa ladeira podia ser reta.

30.5.09

Olhos de águia

- Do alto do morro, observam as possíveis presas. Quando escolhem a vítima, a descida é fulminante, ágil e precisa. Em questão de segundos, cravam as garras na presa sem qualquer sinal de piedade.

Ao pé do morro, para evitar a hesitação, o comandante descreveu desta forma os pequenos pássaros que engaiolariam: aqueles que, por acidente, não matariam

29.5.09

Mímicos

A internet e as mídias sociais permitiram que pessoas com os mesmos ideais pudessem se encontrar, trocar ideias e agendar protestos, ações organizadas

Infelizmente, por falta de eletricidade ou de vontade, os protestos resumem-se a alguns poucos indignados, extremamente organizados: todos de camiseta preta e nariz de palhaço, todos mudos

28.5.09

Sem rumo

Sem trabalho e sem sorte
procurando um norte
acabou indo parar no sudeste

Sem saber o caminho certo
acostumado ao campo aberto
perdeu-se no labirinto de prédios

27.5.09

Motim

Rebelou-se contra os próprios sentimentos

Quando eu disse que ela ainda me amava, respondeu - assim sem pausa:

- Amo-tenada!

26.5.09

Pôr do só

Lá pelas cinco da tarde, as ruas esvaziam de gente, de carros e até mesmo de pássaros

Quando a noite é uma ameaça, apenas o sol tem coragem de dar as caras

25.5.09

Entrincheirados

Frente a frente, de ambos os lados, bravos homens e mulheres permanecem enfileirados. Atentos a cada movimento, aguardam apenas um sinal para que possam avançar.

Assim que o sinal é dado, partem apressados, desviando dos que vem em direção oposta, ansiosos por chegar ao outro lado. Afinal, neste campo de batalha, os mais temidos circulam sobre rodas.

24.5.09

Sinfonia do medo

Quando aquele jovem casal mudou-se para o 209, as batidas e gritos viraram a trilha sonora da rotina

A entrada dos metais, graves, adicionou tensão

Por fim, ouviu-se apenas um sopro agudo, último suspiro

A platéia permaneceu estática, cada um em sua poltrona







2009 - 6º lugar no Concurso Bar do Escritor - Comunidade Bar do Escritor;

23.5.09

Jogo de azar

Apostei trinta reais no meu time do coração. Ainda restavam quatro dias para o final do mês e, se perdessem, provavelmente eu ficaria sem ter o que comer por pelo menos uns três dias, até chegar o salário - isso se o chefe resolvesse adiantar o pagamento, porque o quinto dia seria inútil, bem no feriado.

Apreensivo, roí unha durante todo o primeito tempo, fraquíssimo, um merecido zero a zero. Mas, no segundo tempo, soltei o grito comemorando três gols e maldizendo o juiz e o goleiro por outros dois. Até o final, sofri, mas o time venceu.

Voltei do estádio andando e de estômago vazio, para ver se conseguia segurar mais um dia. Ainda assim, valeu o ingresso, aposta de risco.

21.5.09

Crítica

Enfiaram-lhe a faca no umbigo e giraram

Não podia ter doído mais, era tão visceral e classificaram de imaturo

Ferido no ego, arrastou-se de volta a sua vida vazia

20.5.09

Viagem solitária

Sentindo-se só, o sujeito mais injustiçado do mundo, sentou-se ao silêncio da praça

Ajeitou-se e tirou do bolso o velho caderninho no qual regurgitava o que depois chamaria de poesia

Ao curvar-se para escrever, caiu no próprio umbigo

19.5.09

Sociável

Sempre ouviu falar do papel social da literatura

Ao reparar no coleguismo dos editais e no puxa-saquismo dos saraus, entre apertos de mãos e tapinhas nas costas, percebeu que havia entendido errado

18.5.09

Subvertido

Discursava sobre a injustiça
sobre a pobreza
e sobre a fome

Nunca soube como era ficar abaixo, suportando a pressão

17.5.09

Programação

 Indignou-se com as notícias

Acalmou-se com a novela

Alegrou-se com o futebol

E, por fim, vendo um filme, acabou desligado

Programação

Indignou-se com as notícias

Acalmou-se com a novela

Alegrou-se com o futebol

E, por fim, vendo um filme, acabou desligado

16.5.09

Cobiça

O pecado original sempre foi visto como um mau exemplo

Surgiu então a pirataria, salvação dos que nunca puderam

15.5.09

Pirâmide social

Alguns sobressaem vendendo valores

Outros, sobrefaturam vendendo ideais

Enquanto o povo sobrevive, vendendo latinhas e jornais

12.5.09

Fora dos padrões

Quando a mídia anuncia os tempos de vacas magras

As mais saudáveis, que ao menos não expõem as costelas, acabam abatidas, deprimidas

11.5.09

10.5.09

Encomendas

Durante a noite, fatigados, embrulham-se em papelão

Na esperança de serem enviados a algum lugar melhor

9.5.09

8.5.09

Aninha

Começamos a juntar o pouco que tínhamos

Para evitar o frio, ela cobriu-me de expectativas, aninhou-me

6.5.09

Falta

Neste quarto com paredes cobertas de memórias

Seus encantos ecoam por todos os cantos

5.5.09

Sociedade organizada

Para cada órgão que se cria, outros dois são criados para investigá-lo

Nesta aberração estatal, os órgãos vitais não funcionam

E sobram apêndices

4.5.09

Gerando empregos

- Sr. Garcia, pelos meus cálculos, o projeto vai consumir 70 milhões de reais e 250 vidas.

- Albert, não exagere! Eu sei que você pode melhorar esses números...

- Se espremermos bem, senhor, creio que podemos reduzir para 50 milhões e 500 vidas.

3.5.09

Teoria da involução

Sempre acreditou-se que o homem tinha vários elementos que o diferenciavam dos outros animais

Uma a uma, as teorias de superioridade foram caindo. De todas, restou apenas uma, com uma pequena correção, afinal, não é o polegar opositor que nos diferencia, mas sim o indicador delator, que acusa, julga e condena

2.5.09

Arte que cabe no marketing

Após uma rápida passada pela ala reservada à década de 80 e uma olhada na ala dos anos 90, o guia continuou o passeio:

- Então, neste período, iniciou-se o grande movimento artístico e cultural, patrocinado pelas grandes empresas, que mais tarde ficou conhecido como "Editalismo".

30.4.09

Futebol

Nas arquibancadas, os torcedores se abraçam, comemorando a vitória suada

No camarote, os cartolas evitam o contato físico, mas sorriem, comemorando mais um ano de fartura

29.4.09

Pra burguês ver

O espírito que era livre, para sobreviver da música, precisou submeter-se àquele cenário:

Um banquinho e um violão, uma corrente e um grilhão

28.4.09

Nada a declarar

O mundo anda tão sem ação

Que até a super interessante, que já virou o passado do avesso, ficou sem assunto

27.4.09

Correspondente de guerra II

Era uma madrugada de primavera. Eu não sabia exatamente qual dia porque não saia de casa desde que vim para cá. Ouvi os primeiros tiros. A violência assustou a vizinhança, gritou e acendeu a luz.

Confuso, tive vontade de ir até a janela, para ver se conseguia alguma imagem do combate, mas tive medo de ser alvejado por alguma bala perdida. Ciente dos riscos, engatinhei até a janela e, decepcionado, vi o cenário fantasma de toda madrugada. Também vi as poucas luzes nos prédios em volta apagando-se aos poucos, enquanto acostumavam-se com os tiros, cada vez mais escassos. Percebi que o risco que eu corria era relativamente baixo.

A partir deste instante, meu medo era invisível - o que tornava a convivência com ele muito mais fácil. Aliviado, apaguei a última luz e dormi.


26.4.09

Baile das sombras

A vela acesa no canto do quarto, chama intermitente

Faz as sombras moverem-se delicadamente, nos acompanhando

25.4.09

Corrida

Todo dia, no mesmo horário, é dada a largada. A dispusta é feroz, não há espaço para todos. A maioria espera no ponto, alguns se espremem nos metrôs e outros gritam e esperneiam, de dentro do carro, ansiosos para saber quem chega primeiro até a tv.

24.4.09

Corrosivo

Ao entrar, percebeu de imediato que algo estava errado

Os pensamentos amargavam o silêncio áspero daquela sala

23.4.09

Inveja fosca

Quando ela fica mais lenta, mesmo reduzindo a produção, recebe todos os cuidados do chefe. Eu, se ficar mais lento sou descartado no dia seguinte, me substituem por outro igualzinho, para fazer a mesma função repetitiva e monótona de todo dia, das oito às seis, com as teóricas duas horas de almoço - que resumem-se a 15 minutos engolindo o bandejão, 10 minutos no banheiro e cerca de 35 minutos dedicados ao cigarrinho do dia. E o chefe ainda diz, por causa do bandejão (que nem é muito bom), que a empresa cuida da gente. Aposto que gasta mais com ela em uma semana do que com todos nós no mês todo. Queria eu ter metade da atenção e cuidado que ela tem, queria eu, por um dia que fosse, deixar de ser máquina humana para virar uma dessas, brilhantes, de metal.

22.4.09

Formiguinha

Ao invés de perambular pela rua, passa o dia todo na escola. Na hora de voltar para casa, não tem dinheiro nem para comprar um chiclete. Neste momento, ansioso por um docinho, ele pede ou rouba, da mesa do bar, um pequeno sachê de açúcar.

20.4.09

Oásis

Há algum tempo, aqueles que caminhavam pelas ruas desertas, procurando uma boa conversa, encontravam a redenção nas praças, repletas de idéias e debates

Acabam nos mesmos lugares os que hoje caminham pelas ruas congestionadas, procurando um pouco de silêncio

19.4.09

Síndrome de Estocolmo

Do alto de seu salto, desconfortável e apertado, que fora obrigada a usar desde a adolescência, denunciava a crueldade e o atraso de outras sociedades, que impunham às mulheres regras e normas, fôrmas e formas.

18.4.09

Resgates

Todo indivíduo solitário é um náufrago

Acompanhado da pessoa certa, tornam-se ilha

17.4.09

Deficiências

O governo, envolvido pela burocracia, ficou imóvel

A polícia, em meio a tanta sujeira, perdeu o faro

O povo, iludido ou cansado, ficou mudo

E a justiça, resguardando-se, fica de olhos bem abertos

Olho

16.4.09

Surrealices

Apressado, o coelho fugiu daquele mundo surreal, cheio de incoerências

Apesar de tê-lo seguido, Alice, considerando-se muito sóbria, resolveu voltar



* em parceria com Aninha

15.4.09

Anjos e demônios

Antes de apagar a luz, a mãe sempre dizia:

- Durma bem, meu anjinho!

Por mais que lutasse contra o sono, não resistia. O pai sempre chegava depois dele dormir, bêbado, e batia nela. Ele se culpava. Dizia a si mesmo que, quando os anjos dormem, a escuridão toma conta.

14.4.09

Ventos da economia

Renomados economistas continuam citando os "ventos da economia"

Enquanto isso, os mais pobres vão descobrindo, de tombo em tombo, que tais ventos só definem para que lado vão cair

13.4.09

Mercado de valores

No carro, mais um opcional
responsabilidade social

O caderno vem com bônus
de apoio cultural

Para aderir à moda
vista a causa ambiental

Dê valor aos seus valores
Compre, venda e troque

12.4.09

Calor

Cachorros com a barriga no chão gelado e gatos com a barriga para cima. Homens obesos com a camiseta regata dobrada por cima da barriga e mulheres magérrimas com a barriga de fora para pegar uma cor. Lagartos repousando sobre as rochas quentes e lagartas virando borboletas. Gotas de suor que escorrem na testa e gotas de chuva que não refrescam.

Calor é fogo que arde sem se ver

É ferida que seca e cria casca

É um descontentamento insistente, incômodo e inconveniente

11.4.09

Pregação

Martelam as mesmas idéias sem parar

Até que seja mais cômodo deixar do que tentar tirar

10.4.09

Eufemismo

No velório, todos diziam que ele era um homem muito justo

Era a maneira menos ofensiva de dizer que era cego, indiferente aos que o carregaram em vida e que agora choravam sobre o caixão

8.4.09

Retrógrados

Há muito tempo, os incomodados gritavam pelas ruas, revoltados, para mostrar que não eram gado

Atualmente, os acomodados ficam em silêncio, desesperados, pela ameaça de ficar sem pasto

7.4.09

Praça da impotência

A justiça, cega, fica sentada no meio da praça


Enquanto a impunidade corre em volta, gritando, zombando da pobre coitada

6.4.09

De graça

Um dia, por castigo ou azar, pagou caro

Ao reclamar, ofereceram o troco em bala

Calou-se

Nunca mais comprou briga

5.4.09

Desbocados

Por um bom tempo, ficaram batendo boca

Demoraram a descobrir o prazer,
a sutileza de apenas encostá-las

4.4.09

Olhar perdido

As crianças, com olhar atento ao mundo em volta, encontram pessoas, folhas, nuvens e pássaros.

Mas os pais apressados, de tanto as puxarem pelas mãos, acabam por fazê-las perder aquele olhar, tão difícil de encontrar.

3.4.09

Conservação do patrimônio

Não havia dúvida, era a maior obra já realizada. Iniciada nos primórdios da civilização, ergueu-se a passos largos e continua ampliando-se. Atualmente, já incorporou-se aos costumes e ao dia-a-dia de todo o mundo. De tão importante, frequentemente ocupa as páginas de jornais de todos os cantos. Além disso, recebe investimentos de diversos países e empresas interessados em garantir a sua manutenção.

Por todos estes motivos, a desigualdade social foi tombada pelo patrimônio histórico e cultural, herança da desumanidade.

2.4.09

1.4.09

Castas

Em algumas sociedades, não há oportunidade, aos menos favorecidos, de mobilidade em ascenção.

No Brasil, além dos programas de TV, toda quarta e sábado tem sorteio da loteria.

31.3.09

Urubus

Ao notarem alguém em dificuldade, não se contêm e estendem a mão.

Com a mão estendida e o enquadramento ajustado, clicam o momento, tão intenso e visceral. "Uma foto sem preço", dizem os sujeitos sem valor.

30.3.09

Revolução

As primeiras a demonstrarem o espírito revolucionário foram as vacas. Naturalmente, como ensina a história, as primeiras a reagir foram consideradas loucas.

Com o tempo, as aves seguiram os passos e foram até mesmo mais agressivas, deixando centenas de vítimas antes de serem caladas.

Atualmente, os porcos se rebelam e não se sabe ao certo o estrago que vão causar. Ninguém sabe quem serão os próximos. Em breve, não haverá mais animal algum submisso ao homem.

28.3.09

Ao pó retornou

Com aquele tiro, que jurava ser o último, varou a noite

Antes daquele suspiro, o último, descobriu que as ruas traiçoeiras, encobertas pela noite, faziam o acerto de contas

27.3.09

26.3.09

Ganhar a vida

Alguns poucos, sortudos, já a tem desde que nascem

A maioria, no entanto, precisa fazer algum esforço, algo digno de merecê-la

25.3.09

Para o mundo

Quando o garoto nasceu, decidiram criá-lo para o mundo

Aos 8 anos, já tinha visitado a Disney e boa parta dos EUA. Aos 15, apesar de confundir Praga com Viena, conhecia as principais capitais européias. Comemorou o aniversário de 18 anos na Austrália.

Aos 40, ainda precisava do motorista para ir ao bairro vizinho.

24.3.09

Pombos

Vivem pelas ruas, avenidas e praças. Concentram-se principalmente nas grandes cidades, mas podem ser encontrados em todo e qualquer lugar.

Alimentam-se de qualquer coisa, tem hábitos pouco higiênicos e carregam diversas doenças. Há alguns que se solidarizam, os defendem e os mantêm. Mas, a maioria das pessoas sente nojo, desvia os passos e olhares.

De vez em quando, alguns resolvem acossá-los, espantá-los ou agredi-los. E os coitados, sem terem asas para fugir, juntam o que conseguem, do muito pouco que têm, e correm.

23.3.09

Impregnado

Banham-se com o sangue que escorre da televisão e secam-se envolvidos pelas páginas dos jornais

Para tentar disfarçar, com uma leve borrifada de rimas fáceis e palavras difíceis, dão cheiro de arte aos ecos, reflexos, espelhos emoldurados

22.3.09

Lição de desigualdade

Durante a noite, do alto do morro, observando as luzes da cidade, os garotos dizem:

- Para cada estrela lá em cima, há mais de mil aqui embaixo.

20.3.09

Péssimo escritor

Os papéis, cheios de suas palavras vazias, saltavam da escrivaninha e corriam para o corredor

A caneta escapava dos dedos, caia ao chão e rolava para baixo da cama

A cada cochilo, uma revolta

19.3.09

Criação do ornitorrinco

No oitavo dia, entediado, cutucava o chão com uma vareta

Brincando com as sobras de barro e terra seca, entre formas disformes, aspirou um pouco de pó e espirrou

17.3.09

Nossa música

Em um momento qualquer, com ele batucando na estante, perceberam que não haviam escolhido nenhuma música

De inicío, perderam o compasso, acharam que era grave. Preocupados, tiveram dores de cabeça agudas

Após algum tempo, sintonizados, encontraram a solução, perceberam que eram livres para ditar o próprio ritmo

16.3.09

Avaliação

Deixou o sapato brilhando, ajeitou o cabelo e vestiu o melhor terno

Afinal, hoje em dia não se olha apenas os dentes

15.3.09

Heróis nacionais

Ergue-se imponente sobre o Palácio Tiradentes, antiga sede do congresso nacional, montado sobre um cavalo e de espada em mãos

Abaixo, várias pessoas sustentam, em seus ombros, o cavalo e ele

14.3.09

Voo livre

Esses dias, em meu sonho, fui um pássaro. Escapei de uma gaiola e, finalmente, sentindo-me livre, resolvi voar até o lago para banhar-me

Ao ver a situação da água, desanimei. Voltei andando, engaiolado

13.3.09

Isolamento

Não se aproximava de ninguém. Mas, por onde passava, ouvia as conversas alheias e ia costurando-as, transformando em uma coisa só, só dela.

Ao final do dia, tinha em mãos uma bela colcha de retalhos, perfeita para proteger-se do frio da solidão

11.3.09

Manhosa

Vem toda cheia de mimimi
transbordando de artimanhas amorosas

Quando a encho de beijinhos
em um suspiro, esvazia

10.3.09

Correspondente de guerra

Após algum tempo
sem o estalar de tiros
ou a covardia dos assaltos

Pergunto-me curioso
nesta zona de guerra
se, ao menos um pouco
a mídia não exagera

8.3.09

Seleção natural

Entrou na sala, ajeitou-se na cadeira e entregou um questionário que abordava os seguintes temas: qual foi a última pessoa que ocupou o cargo, ultimo salário, motivo da saída, quais outras experiências a empresa tinha na formação de profissionais, quanto pretendia oferecer de salário, se envolvia-se em algum projeto social, cultural ou ambiental, etc.

Permaneceu revirando alguns papéis sobre a mesa enquanto a gerente de recursos humanos respondia ao questionário.

Após o preenchimento, pediu a ela que explicasse um pouco melhor sobre a empresa. Pouco convencido de que o trabalho valeria a pena, avisou sobre as etapas seguintes, uma avaliação de responsabilidade social e uma dinâmica de empresas, e disse que entraria em contato assim que tivesse uma resposta.

7.3.09

Dedicatória

Alegrou-se com a notícia de que o livro seria dedicado a ela. Caminhou até a livraria com passos e um sorriso dignos de uma musa imortal, inesquecível.

Ao abrir na primeira página, leu: "Em memória de..."

O livreiro recolheu o corpo.







2007 - XVII Concurso de Contos Luiz Vilela - Fundação Cultural de Ituiutaba - MG;
Publicado na coletânea do concurso

6.3.09

Visita indesejada

Na casa da ansiedade

Mesmo após o café
o cigarro
e o pacote de biscoito

As horas resolvem ficar mais um pouco

5.3.09

Caçada

Diante do formulário de ocorrência, no local reservado ao estado civil, escreveu com letras garrafais: caçada.

De início, acharam que fosse um erro. Ao verem as marcas, perceberam que o erro era suplício.

4.3.09

Vozes

Cansadas de ouvir, acostumadas pela vida a serem ignoradas

Sorriem sinceramente quando lhes é dada oportunidade de não calar

3.3.09

Salto

Na primeira vez que vi os salmões atirando-se contra pedras e caindo nas garras de ursos, acreditei que estavam cometendo suicídio. Na época, explicaram-me que eles voltavam todo ano ao lugar em que nasceram, para procriarem. Também disseram que, para chegar, precisavam subir o rio, nadar contra a correnteza e enfrentar todos os perigos.

Atualmente, como o maior perigo tornou-se a água, corrosiva, os salmões, implorando por uma morte rápida, saltam mirando a boca dos ursos.

28.2.09

Democrático

Dou filé para quem mastiga
e purê para quem engole

Só não escrevo para quem tem preguiça de pensar

27.2.09

Instável

Nos bairros ricos, os morros sorriem, com seus dentes de concreto, sustentando os lábios para que não beijem os prédios.

Nos pobres, os morros choram, rios de lágrimas, levando tudo que encontram pelo caminho.

26.2.09

Acasalamento

Na época do acasalamento, os machos enfeitam-se e emitem melodias repetitivas em alto volume, com a intenção de impressionar e atrair as fêmeas.

Devido à elevação na quantidade de hormônios, ficam também mais agressivos. Sendo assim, se outro macho estacionar ao lado, com o som mais alto, acabam por duelar, em alguns casos, até a morte.

25.2.09

Impunes

Os direitos de um indivíduo costumavam ir até os direitos de outros indivíduos.

No trânsito, as coisas mudaram. Os direitos dos indivíduos vão, no máximo, até o meio-fio.

Uma vez na rua, reina a lei dos automóveis, implacáveis, que passam por cima dos que ousam ferir o seu sagrado direito de ir e vir.

24.2.09

Engasgue

Colecionava rancores. Vivia guardando-os numa caixa, escondidos debaixo da cama. Com o tempo, a caixa ficou pequena, os rancores espalharam-se pelo chão e ele teve que começar a se desfazer de outras coisas, menos importantes, para abrir espaço.

A situação ainda era suportável quando decidiu levar para casa os desaforos. Em pouco tempo a casa ficou tomada de rancores e desaforos. Não se abria uma porta ou gaveta sem dar de cara com alguns. Inevitavelmente, acabou ficando só. Não se importou muito, afinal, da separação sobraram um bocado de espaço e alguns itens para a coleção.

Ao final de seus dias, não conseguia mais sair de casa, a porta estava bloqueada. Morreu sufocado, com tudo aquilo que não disse.

23.2.09

Revés

Idealista, queria dar oportunidade a todos

Esquecendo-se de si próprio, deu chance ao azar

22.2.09

Don Quixote 2

Em meio ao calor sobrehumano, ao cair das primeiras gotas, fecha os olhos, abre os braços e sente que alguém lá de cima, uma vez na vida, atendeu os seus anseios.

Lá de cima, observando a cena, o empresário ordena à secretária que chame o técnico, para consertar logo o vazamento do ar.

21.2.09

Don Quixote

Após uma jornada cansativa, de duras batalhas, voltando ao seu lar, vê as damas nas janelas dos castelos, acenando com seus lenços. Diante daquela cena, sente-se realizado e sorri.

As moças debruçadas nas janelas, estendendo roupas no varal, sorriem de volta.

20.2.09

Guerra dos quatro dias

Os tambores convocam para a batalha. Na linha de frente, seguem os soldados mais bem treinados. Em veículos bem equipados, os mais experientes comandam a invasão, os avanços e as retiradas.

Ao final da guerra, os vencedores desfilam. Os vencidos sambam.

19.2.09

Pares

Andam em meio a milhares de outros, todos tão sós, isolados. Remoem a solidão enquanto percorrem o chão da cidade. Nunca se trombam e dificilmente se cruzam, sentem medo dos outros. Exibem este medo enquanto percorrem todos os detalhes e desviam apenas de seus pares.

Embora pareçam tão inertes, quando se encontram ao acaso, os olhares, excitados, resolvem provocar os sorrisos.

18.2.09

Minimalismo

Tela sobre papelão, de José e esposa
Lona sobre cabos de vassoura, de Aparecida e filhos
Jornal sobre calçada, de Maria e filha

Muito pouco sobre quase nada
A dura arte de sobreviver

17.2.09

Toca do coelho

Alucinado, cercado por sorrisos falsos, acreditou que estava entrando na toca do coelho

Descobriu tarde demais que se tratava de um ninho de cobras

16.2.09

Direitos

Não importava o local em que parasse, sempre acabava acossado e expulso

Sem ter onde ficar, ir e vir tornou-se obrigação

15.2.09

Ordem mundial

Nos bastidores do poder, a cada dia é estabelecida uma nova ordem

Alguns dão a ordem

A maioria apenas abaixa a cabeça e obedece

14.2.09

Consumismo desenfreado

Após um século de consumo excessivo, notaram que o consumismo não se tratava da capacidade delas de consumir produtos.

Perceberam tardiamente, quando os estoques já estavam escassos, que se tratava da capacidade das empresas de consumi-las.

13.2.09

Exemplo

No Japão feudal, os homens que perdiam a honra eram condenados pela sociedade e executavam a própria pena

No Brasil atual, os desonrados nem ao menos sentem pena da sociedade que condenam

12.2.09

Poesia oca

Escrevia, com rimas e floreios, sobre os próprios sentimentos

Transcrevia emoções com perfeição

Infelizmente, na maioria das vezes, sentia-se vazio

11.2.09

Má companhia

Não tem olhos nem ouvidos, mas possui uma língua muito afiada

Mesmo sem ver ou ouvir nada, tira conclusões precipitadas e espalha acusações caluniosas

Quando percebi que via apenas os espinhos nas rosas, abandonei a Paranóia

10.2.09

Testemunha

Às vezes, fecho os olhos

Sobretudo para não ver
tudo que os outros não querem
nem ouvir falar sobre

9.2.09

Destino

Separou o dinheiro, fez o sinal e, após a parada total, subiu as escadas. Antes do ônibus partir, perguntou ao condutor:

- Esse ônibus vai para onde?

- Vai para onde você está indo.

Na hora, não soube dizer se ele estava sendo irônico. Ainda assim, seguiu viagem.

8.2.09

Cheia

Noite de lua bela

Lua cheia
de modéstia

escondendo-se por trás das nuvens

6.2.09

Distinto

O vento começa a soprar mais forte e as árvores balançam desesperadas, incapazes de fugir do temporal. Os pássaros escondem-se rapidamente enquanto os carros, também apressados, enfileiram-se pelas ruas, buzinando, desesperados como as árvores.

Enquanto isso, dentro de casa, ela repara de longe naquele sorriso e ouve o que já pressentia:

- Mãe, posso tomar banho de chuva?

5.2.09

Terapia de casal

Puxou-a pelos cabelos e acertou um gancho em seu queixo. Ela não deixou barato, acertou um chute no rosto e mais alguns socos.

Brigaram e se xingaram até cairem ao chão em frente ao sofá. Abraçados, rolando pelo tapete, entrelaçaram-se nos cabos do videogame.

4.2.09

Sufocada

Presa naquela relação, rotina de brigas e discussões, começou a sentir-se sufocada. Não tinha voz e, por mais que resistisse, acabou sem ação.

Ironicamente, ela adorava sentir o cheiro dele naquele travesseiro.

3.2.09

Colecionando

A cada dúvida ou problema
parava, pensava e agia

Respostas,
não tinha uma sequer

No entanto,
colecionava hipóteses

e possíveis soluções

2.2.09

1.2.09

Anexo

Às vezes, a alma ferida se contrai

E o corpo, puxado por ela, encolhe-se em um canto

31.1.09

Deficiente

Ao sair do carro andando apressado, após estacionar na vaga exclusiva, foi abordado por um sujeito que lhe avisou:

- Não sei se o senhor sabe, mas esta vaga não é destinada a quem possui apenas deficiência de caráter.

Ao ouvir isso, deixou cair ao chão toda a hipocrisia que vinha carregando e, percebendo-se pela primeira vez através dos olhos com que julgava os outros, condenou-se à vergonha.

30.1.09

Sem senso

Embriagado por elogios falsos, acreditava-se um difusor de ironia destilada


Talvez por ser tão inteligente e sutil
Quanto um bêbado chegando em casa, tropeçando na própria calça

29.1.09

Pânico

Correram para dentro de casa enquanto o portão batia aos fundos. Em seguida, percorreram todos os cantos trancando portas e janelas, cobrindo toda e qualquer fresta.

Quando enfim sentiram-se seguros, sentaram-se no sofá da sala e ligaram a televisão. Erro fatal, foi aí que a crise entrou.